Conforme solicitado #3
Três é o número mágico
Essa é a aguardada terceira edição do Conforme solicitado! Eu digo aguardada porque é natural que as pessoas esperem que depois de uma segunda edição venha uma terceira. Poderíamos surpreender vocês com uma quarta ou até uma oitava edição, mas a gente entrega o que promete.
Nesse número Gabriel Trigueiro fala sobre cristianismo preto, João Luís Jr. revela algumas das pegadinhas, digo, estratégias de campanha que o marqueteiro João Santana preparou para o Ciro Gomes e Arnaldo Branco fala sobre privilégios e narrativas, duas palavras que estão na moda.
Na seção de dicas, depois de perceber que até agora só escreveram sobre produções audiovisuais, os três resolveram falar sobre comida e bebida, coisas que são bastante importantes para serem recomendadas pois contêm mais nutrientes do que uma série da HBO. Aproveitem!
Cristianismo branco, cristianismo preto
ou alguma coisas que eu sei sobre esse negócio1
Gabriel Trigueiro
Aqui no Brasil o bolsonarismo age como uma espécie de parasitismo do cristianismo e é a partir daí que ele deve ser exposto e desmascarado. Os verdadeiros cristãos devem ir para a ofensiva. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino nos falavam sobre a Guerra Justa (jus in bello e jus ad bellum). Ou como o Pernalonga nos diria, parafraseando Groucho Marx, “of course you realize this means war”.
Conheci tardiamente, e digo tardiamente porque conheci só agora, com quase quarenta anos na cara, a Bahia. Em um lugar com encantos mil como é Salvador, é difícil, além de impreciso e potencialmente injusto, falar de apenas um lugar, numa lista quase infinita de lugares encantadores. Mas a verdade é que preciso falar aqui da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada na ladeira do Pelourinho.
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi fundada ainda no século XVII, em 1685, para ser mais exato, e foi elevada à categoria de Ordem Terceira em 2 de julho de 1899. Lá toda terça-feira é celebrada uma missa com elementos do candomblé. A celebração é uma mistura da liturgia branca e europeizada de sempre com traços litúrgicos e também temáticos de matriz africana. A síntese dessas duas coisas resulta em uma terceira coisa independente e diferente de tudo que você já viu.
Assistir a uma missa em Salvador, celebrada com atabaques e com cantorias originalmente criadas por pretos escravizados ainda no século XVII, é a demonstração mais adequada de que se parte do cristianismo foi tomada de assalto por reacionários e fascistas, já passou da hora dele ser reclamado de volta.
Por isso, e não por outro motivo, que tem o impacto que tem quando alguém como Kendrick Lamar faz uma apresentação, tanto em Glastonbury quanto nesse último desfile aí da Louis Vuitton, com uma coroa de espinhos e entregando em seus versos um sermão cristão furioso e, como dizem os gringos, “unapologetic black” etc e tal.
Ao se apresentar com uma iconografia cristã e preta, Kendrick encerrou seu show em Glastonbury repetindo à capela os versos “They judge you, they judged Christ, godspeed for women’s rights”. Em um momento no qual o direito ao aborto acaba de ser negado nos EUA, através da derrubada de Roe vs Wade, é importante que Kendrick Lamar reivindique um cristianismo inclusivo, verdadeiramente compassivo, preto e pró-mulher.
Dia desses lembraram que a Christianity Today entrevistou em 1977 Jesse Jackson, uma das maiores lideranças na luta pelos direitos civis nos EUA, e perguntaram para ele qual era a maior diferença entre evangélicos brancos e evangélicos negros. A resposta é maravilhosa, porque a exemplificação que ele usa é também maravilhosa: Martin Luther King, como ponta de lança das forças cristãs pretas e progressistas e Billy Graham, o televangelista branco e conservador. Para Jesse Jackson:
A diferença clássica entre Dr. King e Billy Graham, ambos evangélicos, é a de que Billy Graham teria pregado aos escravos no Egito, convertido suas almas e mandado eles de volta para os campos. Na sequência, iria jogar golfe com o Faraó. Já o Dr. King teria orado para mudar suas almas, e então os teria levado para Canaã.
Como diria Alexandre Magno Abrão, quem é de verdade sabe quem é de mentira.
Algumas outras ideias que o marqueteiro João Santana sugeriu para a campanha de Ciro Gomes e que geraram, em lideranças do PDT, a desconfiança de que ele talvez ainda trabalhe para Lula
João Luis Jr
Ciro Gomes gravar um vídeo fantasiado de Naruto dizendo que iria dar o “jutsu do fim da recessão”.
Ciro Gomes realizar todas as suas lives usando camisa verde, calça marrom e acompanhado de um grande cachorro de pelúcia que falaria "cirubidubidu" a cada cinco minutos.
Outro debate com Gregório Duvivier, porém Marcelo Adnet seria o mediador e dessa vez teríamos uma plateia composta toda por papagaios de pelúcia chamados “Ciroulos Josés”.
Participar do quadro "Vai dar namoro" do programa Rodrigo Faro. Quando Ciro respondeu que já era casado, João Santana teria dito "melhor ainda, vai atrair o eleitorado poliamoroso".
Uma animação parodiando crepúsculo em que Lula é Edward, Bolsonaro é Jacob e Ciro é uma Bella “independente, que não precisa de ninguém e vai quebrar essa falsa dicotomia”.
Gravar em dueto com Simone Tebet a canção "Shallow", “aquela do filme da Lady Gaga”.
Assumir a paternidade do filho da Youtuber "Boca Rosa".
Gravar com Yudi Tamashiro uma versão da roleta do programa "Bom dia & Cia" em que os prêmios são "emprego", "saúde", "segurança", "desenvolvimento" e "playstation".
Se fantasiar de Papa Burguer. Quando Ciro perguntou "mas por que?", João Santana teria apenas dito “pera, já volto” e saído da sala pra falar ao telefone.
Hora da morte
Arnaldo Branco
O caminho do samurai
Arnaldo Branco
Quando você se dá conta de que desfruta de um determinado privilégio, esse privilégio não desaparece imediatamente. Não é como acontece com o Coiote do Papa-léguas, que cai no abismo depois que percebe que estava andando no ar.
Você pode reconhecer um privilégio e continuar aproveitando do mesmo jeito, como se fosse uma pensão vitalícia. No máximo você pode desenvolver um sentimento de culpa e uma vontade muito forte de pedir perdão à esmo, tipo o Monark quando perde um patrocinador.
Mas se os privilegiados não correm risco de perder os privilégios, por que muitos deles se recusam a reconhecer alguns desses privilégios? Por que não admitir, se não custa nada?
Por uma questão de narrativa, claro. Se um privilegiado reconhecer que as coisas foram mais fáceis para ele, como é que o cara vai escrever um livro de auto ajuda se comparando a um samurai?
E não basta não admitir que o caminho foi mais fácil, é preciso afirmar que as migalhas que os mais pobres recebem é que são privilégios. Todo mundo que recebe algum benefício do governo é um aproveitador, só ele é a águia solitária, o líder da matilha de lobos, o aprendiz no monastério que não tem medo de encarar desafios.
Eu só queria ver um desses guerreiros samurai tendo que se virar com duzentos reais de Bolsa Família.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
“Às pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto, que o meu lar é o botequim”
Gabriel Trigueiro
A dica desta semana é uma dica etílica e gastronômica recheada de afeto: é a Casa Paladino — uma mistura de bar com, como se dizia antigamente, “armazém de secos e molhados”. A Casa Paladino fica na Rua Marechal Floriano, esquina com a Rua Uruguaiana. Pertinho do metrô. Tem 116 anos de existência, mas às vezes a minha impressão é a de que a frequento há 200.
Conheci o Paladino ainda na década de 1980, quando o meu pai, que sempre trabalhou na Praça Mauá, me levava para passar o dia no trabalho com ele: o que eu adorava, porque era a garantia de pelo menos um gibi do Homem-Aranha e alguma guloseima excessivamente salgada, excessivamente calórica e excessivamente gostosa após o expediente.
Lembro que a primeira vez em que fui lá, como disse, levado pelo meu pai, eu ainda era bem moleque (tinha o quê? sete anos?) e fui apresentado a um sanduíche chamado triplo no pão: um pão francês bem crocante, recheado com presunto, queijo provolone e ovo.
O negócio é que o meu pai já era habitué do Paladino há sei lá quanto tempo, e sempre pedia o triplo no pão com copa, no lugar do presunto: uma, perdoa o clichê, explosão de sabores, num nível que eu nem sei.
E isso é lá coisa que se apresenta a uma criança? Depois da primeira mordida eu me perguntava se existia mesmo aquele nível de sensação espiritual e gustativa. De lá pra cá, vou sempre que posso.
O carro chefe é o sanduíche, sempre no pão francês bem fresquinho, recheado com frios cortados bem fininhos (salaminho hamburguês, pastrami, copa etc.) e queijos incríveis. Vale muito criar combinações próprias: linguiça com queijo reino é brutal. Pastrami e roquefort também cai muito bem. Enfim, mete bronca.
As omeletes (fritadas) são incríveis. Vai na de sardinha nacional e peça para o garçom regar na cebola e na salsa. O chope é, graças a Deus, da Brahma — sempre muito bem tirado: há talento e ciência nesse negócio, viu?
A Casa Paladino é um dos meus lugares favoritos na vida e eu acho que você deveria conhecê-la. Real, depois vem aqui me contar.
O queijo vai te libertar. Mas antes ele vai acabar com você.
João Luis Jr
Vivemos num mundo complexo. Recebemos uma sobrecarga diária de informações, em que, se você absorver tudo a que é exposto, você vai ficar maluco, mas se você ignorar coisas demais, você vai se tornar alienado. Vivemos um período político terrível, em que se você vivenciar o Brasil de maneira intensa tende a ficar doente, mas se não se posicionar diante de tudo isso que acontece acaba se sentindo cúmplice de coisas ainda mais terríveis que podem acontecer. Não existem soluções fáceis, não existem caminhos sem atrito, é muito complicado ter cinco minutos de paz num país caótico num mundo extremamente complexo, num universo em constante expansão rumo ao que parece ser a versão cósmica de uma briga dentro de um ônibus.
Daí a importância de um perfil de Instagram apenas com uma pessoa cortando burratas no meio. Ele não está necessariamente te ensinando a fazer burrata (ainda que mostre o processo), ele não está vendendo burrata , ele não está discutindo sobre a crise entre as candidaturas de duas burratas de esquerda. Ele apenas te mostra uma burrata e aí ele corta ela no meio, e aí você vê o queijo saindo de dentro do queijo e por alguns segundos, alguns preciosos e poéticos segundos, você apenas pensa “hmmm queijo” e esquece todo e qualquer outro problema, graças ao poder mágico da burrata. Obrigado burrata, obrigado homem italiano que faz e corta a burrata e também obrigado desconhecimento de italiano por permitir que eu aprecie o corte de burrata sem necessariamente precisar pensar sobre o que está falando o homem que corta a burrata.
Bar Lagoa, um estudo de caso sobre o atendimento carioca: sim, os garçons são antipáticos mas você também não diz bom dia para o porteiro
Arnaldo Branco
O bar Lagoa já se chamou Berlim e teve que mudar de nome quando submarinos alemães bombardearam navios na nossa costa, o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial e o povo arrumou uma implicância retardatária com os nazistas. Como a gente é muito macho e não tem medo de garçom de cara feia, revidamos o bombardeio jogando pedras nos botecos com nome alemão. Foi o início da virada no grande conflito mundial.
Aconteceu com outros bares cariocas, como o Renânia, que virou Jangadeiros depois do quebra-quebra; e com o bar Luiz, que antes se chamou Zum Schlauch ("A serpentina"), depois Zum Alten Jacob ("Ao velho Jacob") e, na época do apedrejamento, Bar Adolph. Na minha modesta opinião, ele até lucrou com o ataque dos haters daquele tempo: bar Luiz é um nome bem mais simpático. Se Hitler se chamasse Luiz Hitler a geopolítica mundial teria outra configuração? A se pensar.
Rolou uma coisa parecida com a colônia italiana, que fazia parte do Eixo na época da guerra. Por exemplo, no futebol: tanto o Palmeiras quanto o Cruzeiro se chamavam Palestra Itália e pra não pegar mal com o exército aliado mudaram de nome. Mas curiosamente pouparam os restaurantes italianos, você não costuma ouvir falar em uma cantina chamada Bar do Tião.
Então essa é a pergunta: bar tem ideologia? Tem nacionalidade? Dupla nacionalidade? Um bar suíço é uma embaixada neutra?
O bar Lagoa é famoso por seus garçons antipáticos, mas é preciso ver caso a caso. Vai que os garçons te tratam mal porque alguma você fez.
É charme? É norma da casa? Ressentimento por causa do apedrejamento em 1942? Sim, porque muitos dos que participaram da destruição dos estabelecimentos alemães eram clientes que voltaram a frequentar os bares no dia seguinte, enquanto os funcionários varriam os cacos, fingindo que nem era com eles. Mas que clientela filha da puta. Eu atendia mal também.
O bar foi construído em 1934, antes que a especulação imobiliária transformasse a Lagoa em um dos metros quadrados mais caros do Rio. Pode-se dizer que o bairro foi construído ao redor do bar, que não tem culpa se a vizinhança virou metida a besta. Se bem que mais ou menos: o bar é considerado um clássico da art déco, adornado com mármore de Carrara, em uma época em que aquela área (junto a Ipanema) praticamente só era habitada por pescadores.
O cardápio é basicamente de comida alemã: salada de batata, salsichão branco com mostarda preta, essas coisas pra beber com chopp, que é ótimo - mas até aí bar alemão com chopp mal tirado deve ser proibido pela Convenção de Genebra.
Então é isso: excelente bebida e comida de colono, de sobrevivente, de turista que compra pacote pra Oktoberfest. Vale a pena, principalmente se você não se importa em implorar por atendimento.
Este texto é dedicado à memória de Salvadora Cordeiro, minha avó: mulher negra, evangélica e a pessoa mais tolerante e compassiva de que se tem notícias.