Conforme solicitado #66
Vem cá que a gente tem uma coisinha pra você
A existência humana é feita de contrastes e conflitos. A fronteira entre o que você quer e o que você pode, o que você planeja e o que você faz, o que você defende e o que você pratica.
Veja o nosso caso, aqui na Conforme. Somos grandes defensores do livre acesso a informação, da democratização do conhecimento, daqueles sites que te permitem pular o paywall dos outros sites, pra você poder ler a notícia toda. Para nós, escrever não é trabalho e sim prazer, para a gente cada newsletter é uma carta de amor enviada para o mundo, acreditamos que a maior recompensa possível é o brilho no olhar da criança, o sorriso da mulher trabalhadora, a satisfação do amigo que deixa seu like em nossas postagens como um pai dando abraço em seu filho que tirou nota boa na prova.
Mas ao mesmo tempo, também somos grandes defensores do dinheiro. Somos pessoas inseridas num sistema capitalista, somos homens de hábitos caros, gostamos de drinks com guarda-chuvinha, roupas bonitas, discos de vinil, ter uma iguana como bicho de estimação e ir na padaria usando uma réplica em tamanho real da armadura do Homem de Ferro, por mais que seja bem quente e a gente não consiga falar direito através do capacete, então sempre recebemos o número errado de pães.
Por isso, ainda que tenhamos sempre divulgado aqui as opções de assinatura paga – aqueles 15 reais mensais que os amigos conhecem, 150 no anual, 250 se você realmente curtiu – jamais produzimos conteúdo exclusivo para esses assinantes, prezando sempre pelo conteúdo aberto e tratando cada um dos amigos, amigas e amigues que nos assinam de maneira absolutamente igualitária.
MAS ISSO VAI ACABAR! Não, não iremos sonegar conteúdo dos nossos assinantes gratuitos que tanto nos orgulham, apoiam e incentivam. Mas iremos sim, pela primeira vez, oferecer aquele agradinho a mais para você que tem colocado dinheiro na mesa, que tem nos incentivado com cifrões, você que financia a dose de tequila importada do Arnaldo, as 5 trufas do Gabriel, os 100 reais que o João perde mensalmente naquela rinha de galo em Rocha Miranda porque insiste em apostar sempre no mesmo pombo.
Será um conto inédito de um dos nossos autores – no caso o João – que será enviado para os assinantes pagos apenas na semana da nossa edição de número 70, para garantir que você, que ainda não faz parte desse seleto grupo, possa cobrar dívidas na rua, roubar uma casa lotérica, resolver o espólio daquele seu tio, e receber esse material com exclusividade no seu e-mail.
Mas não só de propaganda vive a nossa edição de hoje, já que também temos Gabriel falando de rap e autenticidade, Arnaldo discutindo os boicotes da direita e João debatendo algumas ansiedades recorrentes em época de aniversário.
Além disso, também temos cartum, dicas e muito amor no coração. Fé em deus, DJ.
Boicote e ignorância
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Em mais uma tentativa de engajamento, influencers do campo da direita estão convocando um boicote contra artistas de esquerda. É uma boa ideia, e a esquerda poderia fazer algo semelhante se fosse fácil encontrar artistas de direita que valessem a pena boicotar. Convenhamos que é bem tranquilo ignorar a obra da banda Ultraje a rigor.
Vamos fingir que a gente não sabe que a grande maioria desses caras prometendo sabotar o novo filme do Lázaro Ramos ou os shows do Diogo Nogueira nunca tiveram a intenção de botar a cara nesses eventos. Pra eles também é fácil deixar de frequentar lugares que eles nunca tiveram a intenção de frequentar — o que garante o sucesso da empreitada mas diminui bastante o potencial de danos contra a conta bancária do ator e do sambista.
Na verdade a bronca dos conservadores com a classe artística é uma confissão velada da sua incompetência na área. Afinal existe uma fatia enorme do público composta por desavisados que não fazem ideia da orientação ideológica dos criadores, e o fato de que a briga dos caras é com as artes de forma geral mostra o quão pouco eles confiam no próprio taco na hora de seduzir pessoas com sua própria produção cultural.
O maior exemplo é a guerra contra a lei Rouanet, provavelmente o item de legislação mais mal interpretado desde a regra do impedimento. Não adianta explicar que o dinheiro tem origem na renúncia fiscal de empresas que dificilmente liberariam investimento para uma cinebio do Che Guevara, por exemplo.
Tanta gente já desmentiu a informação de que a Rouanet é uma espécie de fundo infinito para financiar lacração que é impossível que tantos tenham passado incólumes por uma dessas explicações. Acho que a insistência no ataque é preguiça de achar outro bode expiatório.
Aliás, para muitos conservadores fingir demência é a única forma de continuar consumindo certas obras de que não conseguem abrir mão. Para seguir gostando de Guerra nas Estrelas é preciso ignorar todas as entrevistas do George Lucas falando que a Aliança Rebelde é uma representação do exército norte-vietnamita.
Ou podem fazer pior (como aliás costumam fazer): afirmar que os artistas de esquerda que produzem obras de que eles gostam não entendem o próprio trabalho. Normal: quando você é burro você tem a certeza de que todo mundo é também.
Um gênero na adolescência
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Na segunda temporada de “Atlanta”, no episódio mais badalado da temporada, “Teddy Perkins”, há uma fala sobre o rap, como gênero musical, que jamais esqueci: “I found it never quite grew out of its adolescence”.
É engraçada, e algo cruel, sobretudo quando você leva em consideração que “Atlanta” é uma série feita por um rapper, sobre rappers e, mais abrangentemente, sobre a cultura rap, como ecossistema cultural complexo e criativo.
Não me sinto à vontade em dizer isso nem nada, mas a verdade é que sempre quando penso com calma, tendo a concordar com essa declaração.
Não me entenda mal, eu tou aqui falando do meu gênero musical favorito e tal, portanto repare que essa é uma crítica feita con amore, mas a verdade é que o rap com muita frequência se organiza a partir de princípios bobos e com muita frequência artisticamente infantis.
O mais deletério de todos talvez seja sua obsessão com autenticidade. Há uma certa tendência no universo do rap em, por um lado, valorizar quem vive aquilo que canta (rima) e, por outro, em desqualificar qualquer um que tenha uma biografia percebida como incompatível com a, digamos assim, crueza desse universo.
Um universo, é claro, que frequentemente mistura fanfarronice masculina com afetação de street cred.
Arte, desde que ela existe com esse nome, é fingimento. É fabulação e a capacidade de criar mundos e de ficcionalizar narrativas. Quando o rap se abraça intransigentemente à realidade, ou àquilo que ele percebe como a realidade (que evidentemente é apenas uma fração achatada da dita cuja) ele se limita e se barateia.
Por isso, aliás, que artistas como MF DOOM e Madlib são tão importantes e interessantes — ambos criaram personagens, redefiniram fronteiras e expandiram a linguagem do gênero.
Como Jonny Greenwood disse uma vez em uma entrevista antigona:
Não querendo nos comparar a ele, obviamente, mas tem várias histórias sobre Miles Davis indo na academia Juillard e estudando partituras clássicas na biblioteca. Meio que se evita falar desse lado dele para favorecer o lado “vida louca”.
Se esse tipo de armadilha intelectual já existia na época de Miles Davis, esse mito do “bom selvagem criativo”, de lá pra cá esse negócio pouco mudou e talvez tenha até piorado.
Depois a galera ainda queria criticar a bell hooks quando ela dizia que não gostava de hip hop.
PS: De alguma forma eu acho que este texto conversa com esse aqui, que escrevi há mais de quatro anos. Se por acaso você estiver de bobeira e tiver interesse, dá uma espiadela.
Dark ages
Arnaldo Branco
Pequenos momentos de consternação da época de aniversário
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Surpreendido pela festa surpresa: você pode tentar negar, buscar um viés de otimismo, até mesmo dizer que é paranoia, mas toda festa surpresa bem-sucedida significa apenas e simplesmente uma coisa: sua família, amigos e parceiro/parceira são capazes de combinar e realizar operações complexas, diretamente relacionadas a você, sem a sua consciência ou consentimento.
Se sua mãe foi absolutamente convincente ao dizer que estaria viajando com o pessoal da igreja quando na verdade estava se deslocando para o seu apartamento, ela não seria ainda mais convincente ao mentir sobre quem é seu pai biológico? Se seus amigos conseguem fingir que esqueceram seu aniversário, o que mais eles podem estar fingindo? Será que eles são mesmo seus amigos? Será que esses são mesmos os nomes verdadeiros deles? “Rafael” parece um nome inventado, não parece? Uma namorada que consegue, sem que você note, esconder um bolo dentro da sua casa, o que mais ela pode conseguir esconder? Armas? Explosivos? Conexões com milicianos? Você tem mesmo certeza de onde ela estava quando aqueles 32 ônibus eram incendiados na Barra da Tijuca? O amigo Claúdio dela, será o governador Cláudio Castro??? Em suma, festa surpresa é um negócio esquisito, não gosto de festa surpresa.
Meus marcadores tradicionais de vida adulta estão mortos, tens o que é preciso para esmagar minha sensação de que não sou uma pessoa de verdade: Antigamente era mais ou menos simples. Adulto era quem tinha emprego, adulto era quem tinha casa e carro, adulto era quem tinha filho. Mas aí o tempo foi passando e foi ficando cada vez mais complicado arrumar trabalho, cada vez mais caro ter casa, galera quer 60 mil num Ford Ka, meio que pararam de obrigar tanto assim o pessoal a ter filho.
Daí você chega num ponto em que é óbvio que cronologicamente você está pra lá de adulto, dado seu consumo de relaxante muscular, mas não consegue reconhecer em si mesmo várias das coisas que, na sua cabeça, sinalizariam isso. Seu pai na sua idade já tinha dois filhos e você não tem nenhum, seus amigos estão discutindo carro e você nem carteira tem, nas séries de TV rapaziada da sua idade já estão no segundo divórcio e só agora você chegou no estágio da vida de morar junto com alguém. Você pensa se não deveria se sentir mais maduro, se não deveria ter mais certezas, se não deveria usar mais roupa social, sei lá.
Racionalmente você sabe que não tem nada de errado nisso, claro. Grande parte dos marcos da vida adulta são criações do sistema capitalista e você é muito feliz fazendo as coisas no seu ritmo, sem ter que viver por uma lógica temporal alheia, por mais que as vezes você realmente se sinta como duas crianças, uma em cima da outra, dentro de um sobretudo. Pensamento esse que é interrompido por um áudio do seu afilhado de quatro anos comentando sobre o Homem-Aranha, que você responde com outro áudio, e ele manda mais um, e você mais outro, e num dado momento você se pega pensando “é bom demais conversar com alguém que me entende assim”.
Esqueci de me convidar para o meu aniversário: Hoje em dia parece complicado acreditar, mas houve uma época em que quase todo mundo tinha Facebook. Era praticamente na antiguidade clássica, claro, um tempo onde os dinossauros ainda existiam, o Twitter era uma rede social de gente alegre e descolada e o Instagram servia para postar fotos. E nesse período marcar uma festinha ou convidar as pessoas para tal festinha era uma operação simples: você criava um evento, você disparava os convitinhos – o Face te deixava até filtrar por localização, pra ajudar – e pronto. As pessoas tavam informadas, geral confirmava virtualmente, você até sabia mesa pra quantos precisava reservar.
Mas aí, da mesma forma que o Twitter virou ambiente pra linchamentos e crimes de ódio e o Instagram virou uma rede de propagandas e vídeos do TikTok com fuso atrasado, o Facebook morreu, ou ao menos perdeu 80% dos usuários abaixo dos 60 anos. E agora para organizar um eventinho maroto você vai precisar convidar algumas pessoas pelo Instagram, porque elas demoram pra responder Whatsapp, outras pelo Whatsapp, porque elas não tem Instagram, algumas vão estar em grupos e aí você chama juntas, uma você teve que chamar por email, pessoas que são desafetos não vão mais poder ver a lista de confirmados do evento para que possam se evitar, e aí assim que você posta as fotos no Instagram e aquele amigo curte, você percebe que acabou não chamando a pessoa e está quase fazendo outra festa só por isso.
Não bastou a ascensão da extrema-direita destruir vidas, ela precisou avacalhar com o jeitinho mais prático de marcar festa de aniversário sem esquecer ninguém. Malditos fascistas.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Enterro digno
Arnaldo Branco
Sou fã do Kleber Mendonça Filho antes de conhecer seus filmes, como leitor do site de resenhas Cinemascópio, que também é o nome de sua produtora. Nas suas críticas ele era econômico e sutil para enaltecer obras que gostava e agia da mesma forma pra desmontar as que via com reservas, como um boxeador trabalhando o oponente.
Sua obra como cineasta revela dois grandes interesses: a própria sétima arte e a especulação imobiliária, e os dois estão de mãos dadas em Retratos Fantasmas (2023) filme-réquiem feito para os cinemas de rua de Recife e para o passado de sua própria família, através da história de um apartamento.
Por cima de uma colagem feita de registros amadores, imagens do seu acervo, stills de produções nacionais e estrangeiras e fotos de velhas marquises o diretor narra sua relação profunda com o assunto em um tom resignado, de quem sabe que está se referindo a um mundo extinto, a uma cidade fantasma. Esse registro consciente serve para fugir de um saudosismo fácil e para emprestar humor a uma narrativa que na superfície é bastante melancólica.
Numa época em que cinéfilo virou xingamento em rede social, Kleber canta o fim da era analógica sem parecer uma carpideira. Um enterro digno.
A revolução foi branca
Gabriel Trigueiro
Estou terminando de ouvir um podcast chamado “Starting a Riot”, de uma mina brilhante chamada Fabi Reyna, da banda Reyna Tropical.
A ideia dela é bem excelente e interessante: contar a história do movimento Riot grrrl, do início da década de 1990, quando uma cultura punk underground de zines e bandas misturava indie rock e feminismo da terceira onda e passou como trator por cima de quem ficou na frente.
“Starting a Riot” funciona como uma história oral do movimento. Conta com depoimentos de insiders, mas examina também um ponto cego da época: raça.
Ao mesmo tempo em que bandas como Bikini Kill, Sleater-Kinney e Bratmobile lideravam uma revolução feminista importante, a vanguarda dessa revolução era irremediavelmente branca.
Fabi Reyna, ela mesma mexicana, conta a história dessa época, mas segundo a sensibilidade e a perspectiva de uma mulher não-branca.
Como documento histórico é coisa finíssima. “Starting a Riot” é muito bem pesquisado e estruturado, além de divertido à vera e, claro, tocante para um caralho.
Obras que te atropelam e você não consegue anotar a placa
João Luis Jr
Uma das coisas mais bacanas de um relacionamento, além de cafuné, beijinho, companheirismo e uma pessoa pra assistir “The Bear” contigo e repetir com você “meu deus, primo”, sempre que acontece alguma coisa com o primo, é o intercâmbio cultural que um namoro proporciona.
Afinal, está ali do seu lado uma pessoa com gostos diferentes, que assistiu coisas que você não assistiria, ouviu músicas que você não conhece e leu lances que você nem tinha ouvido falar, e conviver com ela é permitir que todo esse mundo de outras influências e outros gostos comece a se fundir com o seu, te transformando numa pessoa que agora entende os memes sobre “Orgulho e Preconceito”, acompanha polêmica envolvendo a Flora Mattos no Twitter ou apenas se pega citando “Crepúsculo” em momentos inesperados.
E um livro que acredito que jamais teria descoberto se não fosse minha namorada é “A vegetariana”, da autora sul-coreana Han Kang, que saiu no Brasil em 2013 mas é tranquilamente uma das coisas mais interessantes, complexas e mentalmente desgraçadoras de cabeça que li nos últimos tempos.
Centrado na personagem Yeonghye, uma dona de casa que subitamente decide parar de comer carne, o livro aborda a complexa teia de consequências dessa decisão, que afeta não apenas a vida da protagonista como também seu casamento e a realidade de várias pessoas ao seu redor, levando a questões sobre arte, família e principalmente a opção (ou não) de existir como um ser humano no mundo em que vivemos.
Com uma trama que vai ganhando em intensidade e tensão conforme passamos da perspectiva do marido de Yeonghye para a do cunhado de Yeonghye e por fim da irmã de Yeonghye – sem que nunca possamos entender exatamente o que sente ou pensa a protagonista – é um livro desses que, mesmo depois que você vira a última página, ainda continua na sua cabeça por bastante tempo.