Altos e baixos
Olá, enfermeira! Chegamos ao número 64 da nossa amada newsletter Conforme Solicitado. 1964 foi o ano em que os Beatles lançaram alguns dos seus discos mais importantes: “A Hard Day’s Night” e “Beatles for Sale”. Também foi o ano da estreia dos Stones, com seu EP homônimo “The Rolling Stones”.
Ao mesmo tempo foi o momento em que Sinatra lançou “Softly, as I leave You”, um disco decadente, de uma carreira que naquele momento estava descendo a ladeira do ressentimento na banguela do rancor.
Não era exatamente o melhor momento para ser um crooner de quase 50 anos cantando dores de corno com voz empostada e acompanhado de orquestra, você há de convir.
A época, sabemos, era de garotos influenciados por música negra americana, com metade da idade, que se rebolavam no palco e tocavam guitarra elétrica. Por outro lado, esse também foi o ano do lançamento de “Getz/Gilberto”, o álbum histórico que revelou a bossa nova para o mundo.
Estamos agora em 2023, momento no qual os Stones colocaram na pista seu elogiado vigésimo sexto álbum de estúdio. O rock, por outro lado, já não anda mais com aquela bola toda que já teve um dia. A vida é assim, tem sempre seus altos e baixos. Exceto, claro, para a bossa nova. Porque, como já dizia o outro, “a bossa nova é foda”, você sabe.
Nesta edição Gabriel escreve sobre a morte do discurso histórico (ui!); Arnaldo sobre racismo e moralismo e João sobre ideias de dates. Além disso, temos o cartum do Arnie e as dicas da redação.
Arrasta pra cima, meu killing me softly.
O verdadeiro Fim da História
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Há coisa de uns 10 anos, por aí, lembro de ter publicado um tuíte tão tolo e equivocado quanto um tuíte pode ser. Alguma coisa a propósito da reação da imprensa e da comunidade internacional a algum ataque terrorista, que francamente não me recordo qual foi, mas que havia acabado de ocorrer. A frase era mais ou menos assim:
Qualquer pessoa que condene esse negócio com uma adversativa, não está condenando coisa alguma, mas apenas dando uma reboladinha retórica.
Na época me pareceu uma boa frase de efeito, além de exprimir uma verdade mais ou menos insofismável: a de que a política deliberada de atingir civis jamais poderia ser intelectualmente justificada, fosse qual fosse o contexto que a houvesse antecedido.
Na época eu pensava assim: o cabra meteu um “contudo”, um “entretanto”, um “porém”, um “todavia”, fodeu, lá vai ele defender o indefensável. O negócio é que o tempo me mostrou que esse era um pensamento composto por um tanto de ingenuidade e mais um cadinho assim de ignorância.
A premissa desse argumento não poderia ser mais equivocada — era a ideia de que há uma equivalência semântica e moral entre explicar (contextualizar, pôr em perspectiva etc.) e desculpar ou endossar o que quer que fosse.
Se qualquer tentativa de historicizar um problema é criminalizada e hostilizada no debate público, que a propósito tem florescido cada vez mais e mais numa conjunção de moralismo e antiintelectualismo, aí fodeu tudo, né. O perigo desse troço é a morte do discurso histórico.
Corta para 2023. Toda tentativa de recordar que os ataques em Gaza foram antecedidos por uma política colonialista de apartheid (se lembra quando Jimmy Carter era o único a usar a expressão?) foram recebidos com reações que variavam do desdém a acusações de antissemitismo e interdições moralistas e intelectualmente desonestas do debate.
Embora alguns setores da esquerda realmente flertem com variações mais ou menos explícitas de argumentos antissemitas, o que é intelectualmente repulsivo e moralmente indefensável, claro, recordar o processo histórico que culminou nos ataques recentes do Hamas não tem nada de antissemita, é apenas o desenvolvimento de um argumento atento a nuances, contexto e uma reação à mistificação que sugere que aquela catástrofe humanitária implodiu da noite para o dia.
Por outro lado, claro, o antissemitismo é um problema real e cada vez maior e mais urgente. Até porque ele se manifesta de formas às vezes sutis e foi fundamental na ascensão do populismo de extrema direita da última década.
Por exemplo, quando trumpistas se mostram obcecados com George Soros, isso é antissemitismo. Quando falam de globalismo, isso é uma code word para antissemitismo. Até quando Olavo de Carvalho falava do Foro de São Paulo, aquilo também era antissemitismo — não no conteúdo do que ele sugeria explicar, óbvio, mas na própria estrutura argumentativa. Isto é, na ideia paranoica de que havia uma cabala secreta de lideranças desnacionalizadas alterando secretamente os rumos da política internacional. É um papinho 100% Protocolo dos Sábios de Sião, repare.
Pouco importa se essa ala da extrema direita puxa o saco de Israel, aliás, do Likud especificamente, sejamos precisos, porque o antissemitismo continua sendo o, digamos assim, frame mental e discursivo dessa galera.
“Explanations are not excuses”
O problema e a beleza de ser velho é o fato de que você raramente é surpreendido pelas coisas. Quase sempre o que acontece hoje é uma variação de alguma coisa que aconteceu ontem. E o que vai acontecer amanhã será uma modulação de alguma coisa que está em curso neste exato momento. Lembro agora, por exemplo, do 11 de Setembro. Ou melhor dizendo, das reações ao 11 de Setembro.
Aos ataques se seguiu uma atmosfera de ufanismo tóxico, de ultranacionalismo, e qualquer pessoa que naquele momento ousasse recordar o histórico, pra gente usar um eufemismo, complexo, da presença norte-americana no Oriente Médio, era taxada como alguém que estivesse desculpando os atentados terroristas ou até celebrando a morte dos 3000 civis. Daí toma-lhe de falsas analogias históricas e de expressões vagas como “clareza moral” e etc.
O negócio é que o apagamento do discurso histórico, e de qualquer perspectiva contextualizada de longa duração, pode gerar o que Sarah Schulman definiu muito bem, em artigo recente para a New York Magazine:
At the root of this erasure is the increasing insistence that understanding history, looking at the order of events and the consequences of previous actions to understand why the contemporary moment exists as it does, somehow endorses the present. Explanations are not excuses — they are the illumination that builds the future. But the problem with understanding how we got to where we are is that we could then be implicated.
“Explanations are not excuses”, caralha.
Desculpa, Fukuyama, mas esse sim é o verdadeiro fim da História.
Mais algumas ideias de primeiro encontro pra você que quer realmente sair bastante da sua zona de conforto
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Bar é coisa de gente sem criatividade, pro samba qualquer um convida, então por que não proporcionar uma experiência realmente diferente para essa pessoa que você não conhece tão bem e levá-la a um cartório? Sim, chame a gatinha para reconhecer uma firma, convide o crush para fazer uma averbação, pegue uma procuração no nome da sua avó de 96 anos e vá regularizar a situação daquele sítio da família cujo espólio deveria ter sido resolvido em 1982 mas seus pais tiveram preguiça. As filas imensas proporcionam momentos para conversar com tranquilidade; a burocracia sem fim te permite descobrir se a pessoa tem a paciência necessária para construir uma relação e toda a linguagem cartorial permite cantadas de alto impacto como “quero me perder no seu corpo da mesma forma que nossa solicitação se perdeu na área de verificação de documentos e agora vamos precisar começar o processo todo outra vez, são mais 20 dias úteis, princesa”.
Cansado de primeiros encontros superficiais, com as mesmas perguntas de sempre sobre quais séries anda vendo, com o que trabalha, o que gosta de fazer nos fins de semana? Então é a hora de, tal qual o rapaz que toca Maria Bethânia em Aquarius, mostrar que você é intenso, oferecendo primeiros encontros profundamente pessoais, que atravessem a 120 km/h numa Kombi rebaixada os limites normais da privacidade e do bom senso. Combine com ela na porta da casa do seu pai com quem você não fala há 20 anos e assim que ele sair com os filhos do segundo casamento comece a gritar “ENTÃO É POR ELES QUE VOCÊ ME TROCOU? EU NÃO ERA O BASTANTE PRA VOCÊ?” enquanto ela tenta te segurar. Descubra o nome de 3 ex-namoradas dele e chame as 3 para estarem presentes no encontro, oferecendo feedback a cada movimento dele, com frases como “ah, essa é manjada” ou “se tivesse feito isso comigo talvez não tivéssemos jogado no lixo 6 anos da minha vida”. Se encontrem num local de doação de sangue e respondam juntos aquele questionário pouco ou nada invasivo que pergunta quantos parceiros você já teve, se você frequenta termas, se anda dividindo seringa com a galera por aí.
Jantarzinho descolado? Esqueminha de rooftop? Lugar que tem drink bonitinho? Escolhas covardes, feitas por pessoas que têm medo de viver novas experiências, que não tem a coragem para sair realmente da zona de conforto. Que tal trocar essa roda de samba clichê por um encontro dentro de um globo da morte de circo de cidade pequena, se possível com três motos e dois cachorros não vacinados dentro? Deixar de lado o barzinho em Botafogo e ir desbravar uma área dominada pela milícia, usando uma camisa do PSOL? Sair dessa coisinha de beber e conversar e ir colocar fogo num ônibus, explodir um caixa eletrônico de banco, roubar fiação de cobre pra revender no ferro velho? Só é normalzinho assim quem quer ser, meu querido.
Que maneira melhor de saber se um relacionamento pode durar do que já começar garantindo que não vai ser apenas uma ficada? Ao invés de combinar em um bar combine diretamente na casa dos pais dela, leve mala para 15 dias e chegue ao menos 8 horas antes da hora marcada para garantir que, quando ela aparecer em casa, você já vai ter feito amizade com o pai, ajudado a mãe na cozinha e agora se ela disser que não tem interesse terá que encarar um profundo olhar de reprovação do avô, pois que você foi a única pessoa, em 16 anos, que sentou com ele pra assistir corrida de cavalo na TV Jóquei e ele já perdeu 3 mil reais desde que você ensinou pra ele como se aposta pela internet. “Julinho só vai embora quando eu recuperar esse dinheiro, Flávia!”
Racismo e moralismo
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Na dúvida entre dois assuntos inspirados pelos acontecimentos da semana, escolhi os dois — até porque é mais fácil desenvolver um argumento quando você é obrigado a encerrar a questão em poucos parágrafos. Estou quase no ponto de emitir minhas opiniões em forma de haikai.
Segundo ato
F. Scott Fitzgerald, que disse que não há segundo ato na vida americana, não conheceu a Rachel Sheherazade. É claro que com “americana” ele queria dizer “estadunidense”, seguindo a mania daquele estranho país que quer tomar pra si o nome de todo o continente, mas enfim. A ex-âncora do SBT, que já defendeu um grupo de linchadores que prendeu um homem negro em um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta, acaba de ser expulsa do reality show “A fazenda” com um imenso fã-clube e na condição de favorita.
Se existe no Brasil um programa de ressocialização eficaz é aquele que distribui indulto para figuras públicas que estiveram envolvidos em episódios de racismo. Gente como o jornalista William Waack, o youtuber Júlio Cocielo, a socialite Val Marchiori, todos foram agraciados com a oportunidade de virar a página e seguir fazendo sucesso apesar de seus, vamos dizer, flertes com um crime inafiançável e — olha a ironia — imprescritível.
Ninguém quer que essas pessoas sejam jogadas na prisão para o resto da vida, até porque a pena para o delito não é essa. Mas fica sempre a impressão de que a gente vive dentro daquela cena de “Community” que virou meme:
Sacanagem e trabalhismo
Os leitores de Conforme Solicitado que estão patologicamente online vão dispensar essa contextualização, mas existe uma personagem do twitter chamada Beiçola do Onlyfans, que é uma jovem que faz propaganda do seu conteúdo na plataforma de material adulto com vídeos um tanto constrangedores. Beiçola é porque seu corte de cabelo lembra vagamente o do personagem de A Grande Família.
Martina Oliveira, a jovem em questão, teve um arco de redenção impressionante porque foi do hate — a reação da galera foi cruel ao ponto dela ganhar esse apelido — à consagração, já que: 1) adotou a alcunha; 2) fez uma campanha de sucesso para ajudar o ator que representava o Beiçola, que estava passando por dificuldades, e 3) passou a fazer vídeos ainda mais constrangedores que agora estão ganhando fãs entre a galera que gosta de curtir as coisas ironicamente.
Recentemente Martina apelou para outdoors com uma foto dela (vestida) ao lado da pergunta: “quer me ver pelada?” — no que deve ser uma das propagandas de sacanagem mais respeitosas jamais exibidas. E quem notificou a querida na Justiça? O MBL, um movimento em tese liberal, mas que resolveu entrar numas contra alguém que só está investindo em uma das raras oportunidades de trabalho que sobraram na era da uberização.
Ninguém que entenda vagamente o significado da palavra liberdade acredita que o MBL realmente tenha algum apreço pelo conceito, mas é curioso como os caras pulam na frente quando se trata de esquecer os próprios princípios capitalistas para prejudicar uma trabalhadora que só queria ser explorada em paz.
Discriminação
Arnaldo Branco
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
O novo da Ana
Gabriel Trigueiro
A dica de hoje é “Me Chama de Gato que eu Sou Sua”, o terceiro disco da Ana Frango Elétrico. É um disco dançante, grooveado e maravilhosamente bem produzido. A instrumentação do disco, os arranjos todos, é coisa de maluco. As letras exploram identidade e conexão de uma forma bonita, muito doce, mas também irônica e engraçada.
Além de tudo, a Ana tá cantando melhor do que nunca. “Me Chama de Gato que eu Sou Sua” é um disco de amor, mas consegue ser absolutamente não convencional. É queer, é ambíguo, é profundo, é complexo, mas é sempre pop e assobiável.
As participações são papa fina também: Alberto Continentino (baixo); Sérgio Machado (bateria); Dora Morelenbaum (arranjo de cordas) e Marlon Sette (arranjo de metais).
No momento estou morando em “Insista em Mim” e “Let’s Go To Before Again” e contando os minutos para conseguir assistir a esse show ao vivo no Circo Voador. Bora?
Pai, me perdoe se nichei demais
João Luis Jr
Poucas pessoas conseguiram fazer mais pelo colunismo de fofocas e pela geração de emprego no Brasil nos últimos anos do que a cantora Jojô Todynho.
Isso porque Jojô, mulher animada e intensa que é, desenvolveu no passado recente diversos relacionamentos com vários rapazes, que normalmente tiveram curta duração, mas que persistiram por tempo o bastante para tornar esses homens mais ou menos famosos, fazendo com que eles não apenas também começassem a receber por eventos e publis como fazendo com que seus novos relacionamentos se tornassem também notícia, numa espécie de esquema de pirâmide da fama, em que Jojô era famosa, seu ex-namorado era famosinho, e em breve a ex-namorada de um ex-namorado de Jojô também teria algum grau de celebridade.
E se você reparar, boa parte dos podcasts funciona mais ou menos da mesma maneira. Você pega uma pessoa famosa e ela tem um podcast, que ela apresenta com uma pessoa desconhecida, que aí acaba se tornando famosa e apresentando outro podcast com uma pessoa que também era desconhecida, mas que por causa dela vai se tornar famosa em terceiro grau, e aí possivelmente começar outro podcast, com outra pessoa.
Foi através dessa lógica que, acompanhando o podcast “Conan Needs a Friend”, do Conan O’Brien, eu conheci um dos co-apresentadores, Matt Gourley, e descobri que ele também tem um outro podcast, que é a minha recomendação dessa semana, chamado “James Bonding”, onde ele e Matt Mira - que eu não conhecia, mas descobri que também tem outro podcast - discutem, um por um, todos os filmes da franquia James Bond, do “Satânico Dr. No” até “Skyfall”.
Sempre com algum convidado especial e quase sempre esse convidado sendo um comediante - que tem um outro podcast com um comediante que você conhece menos - James Bonding é uma grande opção de diversão pra você que gosta de James Bond e comédia o bastante pra ouvir uma análise de duas horas do filme “Spectre” mas obviamente algo que não vai gerar interesse nenhum se você for uma pessoa normal. Ao menos ninguém pode me acusar de não estar sendo sincero.
Coerência lapidar
Arnaldo Branco
Minha saga para arrumar tempo para garimpar dicas segue firme e forte, embora esteja entrando naquele período de fim de ano em que o trabalho começa a escassear e em tese posso retomar o controle sobre a minha agenda. Só é uma pena que em vez de ocupar esse tempo livre vendo filmes e séries, ouvindo discos e lendo livros, desperdiço horas diárias pensando em como vou pagar as contas do ano que vem.
Por isso mesmo estou indicando não um podcast, que é algo tão fácil de acompanhar que você pode desempenhar simultaneamente tarefas complicadas como passear com um cachorro que acha que todos os outros doguinhos são inimigos mortais (confesso que isso foi bem específico, porém acurado), mas um episódio de podcast. Trata-se da entrevista com a livre-pensadora Fran Lebowitz pela humorista Julia Louis-Dreyfus em seu podcast Wiser than me.
E esse episódio nem é recente, só viralizou porque foi citado em uma matéria (essa sim saiu outro dia), onde inclusive descobri que a Julia Louis-Dreyfus tem um podcast. E nem ao menos a protagonista da entrevista é um assunto inédito, já indiquei aqui o documentário “Public speaking” (2010) onde ela é objeto de estudo do diretor Martin Scorsese, que voltou a investigá-la na série “Pretend it’s a city” (2021).
E depois de gastar três parágrafos justificando minha escolha de dica, volto a decepcionar vocês: o podcast não traz grandes novidades em relação à matéria e aos documentários citados porque Fran costuma ser monoliticamente coerente em suas opiniões — a diferença está na maneira como ela formula essa coerência em diferentes frases perfeitas, que dispara como se tivesse um revisor extremamente veloz morando em seu cérebro.
Quem ainda não conhece a figura, favor corrigir esse erro. Agora.