Conforme solicitado #63
Lá vem o algoritmo correndo atrás de mim, o algoritmo que não tem alma e nem coração
Existem muitas maneiras de descrever como opera o algoritmo de grande parte das redes sociais. Por um lado ele é como um gatinho, que sai na rua, acha bicho morto, leva até a sua casa e coloca perto do seu pé. Por outro lado ele é como um irmão mais novo irritante, que vê que você tá na sua e decide te cutucar até te causar alguma reação. Você pode até dizer que o algoritmo do Twitter, por exemplo, opera na mesma lógica que as grandes navegações, privilegiando quem está disposto a ir longe demais no intuito de espalhar doença e desgraça na vida de quem está de boa.
E em semanas em que o mundo real se esforça para se tornar progressivamente mais terrível, é claro que o algoritmo vai fazer a parte dele. São as piores análises possíveis sobre a situação da Faixa de Gaza sendo atiradas na sua cara; são pessoas boicotando chocolate Bis por razões políticas; são situações tão extremas que num dado momento eu estava olhando meu Instagram e apareceu o print de um tuite do Sérgio Moro, o tipo de coisa que drena alegria, inibe o sorriso e reduz em ao menos 3 meses qualquer expectativa de vida.
É aí que a gente, aqui da Conforme, tenta contribuir. Colocar uns links de desenho animado que vão fazer o Youtube te recomendar mais desenho animado e não vídeo da Jovem Pan; te incitar a fazer umas buscas que vão gerar anúncio engraçado no Google; comentar aí uns assuntos que tu talvez não fosse lembrar porque a internet tá tentando colocar o Guga Chacra debaixo da sua cama enquanto você dorme. Nossa meta pessoal? Ser um realinhamento virtual dos chacras dos cookies do seu celular ou computador. Bonito, né? A gente leu num livro.
Por isso nessa semana João oferece dicas para interação com gagos; Gabriel fala sobre “Life in Hell” e Arnaldo lamenta as últimas polêmicas do país. E se você gostar, se te fizer sorrir, se você por cinco minutos esquecer que o Sérgio Moro existe, considere se tornar um dos nossos assinantes premium. É gostoso, barato (apenas 15 reais mensais) e combina muito bem com uma cervejinha.
Breves trechos da nova seção FAQ da página da ABG (Associação Brasileira de Gagos)
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
“É errado completar a frase quando o gago dá aquela travada?”
Ainda que esteja bem longe de ser visto com bons olhos pela comunidade gaga, o ato de completar a frase para um gago após perceber que ele está rateando como um motor de Monza 95 à álcool não é considerado totalmente absurdo desde que você consiga sim completar a frase da maneira correta.
Por exemplo, se você está com seu amigo gago na mesa, ele menciona que quer pedir batatinha, o garçom chega e ele começa o “eu queria uma” mas trava no “bá-bá--”, você pode sim completar “batata”, ainda mais se for lá pelo quarto “bá” ou se ele for daqueles gagos que travam antes da palavra e ficam “éééééé”, porque assim você encerra a agonia sua, dele e do próprio garçom.
O problema são pessoas que tentam completar a fala do gago sem ter a menor ideia do que ele realmente queria dizer, conseguindo com isso apenas agravar ainda mais a tensão do momento. Isso porque se você quer pedir uma batata e se vê preso num jogo de adivinhação onde alguém diz “ele quer bacalhau?”, outra pessoa grita “ele quer batida de limão?” e por fim alguém está dizendo “ele quer uma base argumentativa pra defender o integralismo paulista”, tudo isso quando você queria apenas comer um petisquinho, absolutamente ninguém vai sair ganhando e o processo tende a demorar ainda mais.
“Ajuda se eu pedir pro gago se acalmar?”
Primeiro é preciso reforçar que nunca, em nenhum momento da história humana, uma pessoa que estava realmente nervosa se acalmou porque alguém olhou pra ela e pediu calma, sendo muito mais comuns as reações no sentido oposto, com pesquisas garantindo que, em cerca de 82% dos casos em que alguém pede calma, a resposta mais provável acaba sendo “calma é o caralho” ou variações de acordo com o idioma do interlocutor.
Então ainda que nervosismo e ansiedade sejam sim componentes da gagueira, o fato de que ela pode também envolver mutações genéticas e alterações funcionais no cérebro torna um pouco complicado que a pessoa se acalme tanto, mas tanto, que reescreva o próprio DNA em tempo real e pare de gaguejar. Isso sem contar que é bastante improvável que você, não trabalhando no campo da fonoaudiologia ou neurologia, consiga sugerir qualquer solução para a gagueira que uma pessoa que repete sílabas desde a infância já não tenha ouvido falar.
“Por que o gago às vezes fala engraçado?”
Um dos grandes traços que diferencia a oralidade da pessoa gaga em relação a da pessoa não gaga – fora o fato óbvio do gago ser gago – é que enquanto uma pessoa de dicção normal fala as palavras que ela quer, o gago fala as palavras que ele consegue.
Isso gera um padrão de fala um bocado errático, já que às vezes você pode querer apenas perguntar “é amanhã?” mas travar nas vogais e se pegar dizendo “seria neste presente sábado tal situação?” porque isso tudo foi mais fácil de sair que “amanhã”, enquanto em outras situações você pode articular na sua cabeça uma frase complexa e contundente, que revela um profundo conhecimento da situação, mas tudo que sua dicção te permite dizer quando perguntado sobre o impacto da morte do deputado Ulysses Guimarães no processo democrático brasileiro é “foi pica”.
Isso sem falar em todas as muletas discursivas que cada gago tem, e que variam muito, indo desde “hmmm” ou “ééé” até algumas que chegam a minar a credibilidade da pessoa, como “no caso” ou “acho que” (“como é seu nome mesmo?” – “acho que é joão”), tudo isso criado para tentar evitar a gaguejada ou ganhar tempo para finalmente destravar uma palavra que não está saindo.
“Gagos usam a própria gagueira como álibi para evitar certas tarefas?”
Sim, mas quando um gago pede para não ser responsável por apresentar o projeto na reunião de sexta-feira 16:45 ele está fazendo isso tanto por ele, pra evitar estresse e ansiedade, quanto por você, que vai conseguir sair do escritório 17:30 e não 18:45. Não critique, valorize.
Fim do mundo e falta de assunto
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Nesse apocalipse com acréscimos e prorrogação não apenas somos obrigados a continuar indo para o escritório trabalhar como também seguimos sendo arrastados para polêmicas onde nem ao menos conhecemos direito as partes envolvidas — mas mesmo assim precisamos nos inteirar sob risco de ficar sem assunto na sala de espera do fim do mundo. Vamos então às polêmicas xoxas e capengas da semana.
Chocolacre
Sim, no meio de duas guerras mundiais e com vários dos seus representantes enfrentando problemas com a justiça a direita resolveu comprar uma briga com o chocolate Bis só porque os fabricantes escolheram o Felipe Neto como garoto propaganda. Até concordo que foi uma opção arriscada, como bem sabe a gente da esquerda que adotou o cara temporariamente e morrendo de medo dele falar alguma merda comprometedora quando estava a favor da nossa causa.
Além do fato da campanha para boicotar um biscoito wafer ser uma batalha completamente idiota, ela é também impossível de vencer. Eu já devo ter visto várias propagandas de Bis, só não lembro de nenhuma, e duvido que elas sejam necessárias: o negócio é um folheado de chocolate relativamente barato que vem com várias doses, todas insatisfatórias porém viciantes porque aparentemente o bagulho contém crack. Boa sorte pros caras no cancelamento de um produto que se vende sozinho e que pode substituir uma refeição dependendo do quanto sua geladeira esteja vazia ou quanta maconha você tenha fumado.
Apropriação estrutural
Um grupo de publicitários brancos achou que seria uma ótima ideia criar uma propaganda para vender Panetone baseada no projeto de um rapper ativista negro e, não conseguindo chegar a um acordo com o artista, decidiu seguir em frente com duas cantoras brancas em seu lugar. Isso prova duas coisas: que a falta de noção e a certeza da impunidade são complementares e que publicitário não tem amigo.
Minutos de estupidez
Essa semana foi divulgado o relatório final da CPI do oito de janeiro, com 61 indiciados — todos bolsonaristas. É bom lembrar que foram os próprios bolsonaristas que protocolaram o pedido de CPI, confiantes de que conseguiriam provar que o governo empossado uma semana antes é que havia tentado dar um autogolpe, apesar de todos os registros em vídeo que eles mesmos fizeram se incriminando.
Muita gente diz que o verdadeiro intento da oposição era conseguir um palco para criar conteúdo pras redes sociais — o que os caras só devem ter conseguido depois de trabalhar muito na ilha de edição porque na maior parte das vezes foram triturados no gogó pelos adversários. Acho isso muito engraçado porque é a direita quem costuma acusar a esquerda de botar tudo a perder pela vontade incontrolável de lacrar.
Espero que para eles os minutos de corte tenham compensado as — oremos — sentenças de anos.
Matt Groening já foi indie
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Matt Groening, geral sabe, é o criador de Simpsons. E Simpsons é o desenho mais longevo e certamente um dos que mais gerou dinheiro através de licenças e coisas assim. O negócio é que antes de existir um dos maiores fenômenos culturais dos séculos 20 e 21, havia “Life in Hell”, e é sobre isso que irei falar hoje.
“Life in Hell” durou de 1977 a 2012. Foi uma tirinha que inicialmente começou bem underground, mas que durante o auge de sua popularidade foi publicada em mais de 250 jornais nos EUA.
Tudo começou no final da década de 1970, quando Matt Groening se mudou de Portland para Los Angeles, com o sonho de se tornar roteirista. Inicialmente nosso herói ficou pulando de subemprego em subemprego, até que teve a ideia de criar alguma coisa que refletisse e canalizasse sua frustração, angústia existencial e cinismo diante de coisas mundanas e dos seus percalços cotidianos.
Surgia assim “Life in Hell”: uma tirinha sobre Binky, um coelho depressivo, e Sheba, sua namorada, uma coelha neurótica e sempre irritada.
Além dos dois, também havia Bongo, o filho ilegítimo de Binky com uma ex, Hulga. Completando o bonde, Akbar e Jeff, um casal gay de camisetinha listrada fofa do Charlie Brown.
Em 1985 James L. Brooks convidou Groening para transformar “Life in Hell” em uma animação que fosse exibida em pequenos drops durante o The Tracey Ullman Show. Mas, com medo de perder os direitos de sua amada tirinha para a FOX, Groening preferiu rascunhar às pressas uma família amarela, de modo meio tosco. O resto da história eu e você sabemos.
“Life in Hell” é uma ótima oportunidade de observar toda a verve e brilhantismo do humor do criador de Simpsons, só que em versão proibidona, sem os constrangimentos gerados pelos executivos da FOX respirando no cangote do cabra.
Nos quadrinhos Matt Groening é ainda mais político do que no desenho e não evita o uso de humor abertamente vulgar e sexual.
Com o tempo Simpsons e Futurama foram tomando todo o seu tempo e energia criativa e finalmente, em 2012, “Life in Hell” deixou de ser publicada. De todo modo, com alguma sorte você encontra umas antologias bem excelentes à venda em livrarias gringas.
“Life in Hell” é punk pra chuchu e, ela sim, se você quer a minha opinião a respeito (você quer, não quer?), é a verdadeira obra prima de Groening. Com todo o respeito, aquela família amarela de Springfield que me perdoe.
Cobertura isenta
Arnaldo Branco
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Sobre reaças: lá como cá
Gabriel Trigueiro
A dica de hoje é um livro de 1976, “The Conservative Intellectual Movement in America”, do historiador norte-americano George Nash. Nem todo mundo aqui deve saber, mas estudei a política norte-americana durante mestrado e doutorado. No mestrado, pesquisei a esquerda. No doutorado, a direita.
Ocorre que a obra de Nash foi um dos livros mais importantes para a minha pesquisa sobre a origem do movimento conservador nos EUA, durante o pós-Segunda Guerra.
Além de ser um “quem é quem” da origem do movimento, ele contextualiza historicamente o momento no qual a coisa emerge (como insurgência diante do governo Eisenhower, lido como fraco ao lidar com os comunistas) e aponta a coalizão costurada pela turma, formada por libertários, tradicionalistas e, sobretudo, anticomunistas.
O livro de Nash tem lá suas limitações. Dá ênfase talvez desproporcional a temas, discursos e ideias, em detrimento, por exemplo, de uma análise mais cuidadosa de como esses “temas, discursos e ideias” abstratos foram articulados e transformados em política e ação concreta.
De todo modo depois de lê-lo é difícil não pensar que ao longo da última década a direita brasileira tem copiado cada detalhe, cada maneirismo, cada passo dado pelos conservadores americanos durante as décadas de 1950, 1960 e 1970 (momento no qual a coisa enfim se consolidou durante o governo Nixon e a emergência da direita cristã, e ganhou mais ou menos a cara que tem hoje).
Enfim, know your enemy. Aqueles pique.
Wes Anderson para quem gosta de Wes Anderson
Arnaldo Branco
Wes Anderson é um cineasta de maneirismos facilmente reconhecíveis e por isso mesmo fácil de odiar ou amar. Quem se irrita com a sua imageria de pinterest e os deslocamentos de câmera que lembram o movimento automático dos sistemas de vigilância de shopping costuma não ver graça nas tramas, que também são cheias de cacoetes — como narradores, quebras da quarta parede e deus ex machinas.
Em Asteroid City (2023), um sanduíche narrativo que envolve o registro dos bastidores de uma peça de teatro que na verdade é a trama que vemos no filme, voltamos aos seus cenários de glacê — dessa vez desenhados com o décor dos anos 1950 — para contar a história de um grupo de turistas, estudantes e viajantes de passagem que acaba preso em uma cidade cuja principal atração é uma cratera aberta por um meteorito.
Depois de um evento extraordinário, os personagens são obrigados a ficar em quarentena no lugarejo e se relacionar, elaborando questões como luto (o personagem de Jason Schwartzman é um fotógrafo de guerra recém-viúvo), identidade (principalmente no caso da atriz famosa e em crise interpretada por Scarlett Johansson) e arte (através do dramaturgo Edward Norton e do diretor Adrien Brody na elaboração da peça / filme que vemos na tela).
Filmado em um ritmo ainda mais acelerado do que o das suas outras produções, onde os atores cospem os diálogos como se fossem máquinas de telex, “Asteroid City” é um Wes Anderson on steroids que vai agradar quem não se importa com seus vícios de linguagem — embora ainda me cause espécie sua relutância (palavra escolhida para conceder o benefício da dúvida) em escalar atores negros. Na categoria filme do Wes Anderson é um dos melhores.
Tem vezes em que a gente recomenda com a cabeça, tem outras que é com o coração
Por mais que tenha sempre a galera que curte manter filme no sigilo, que não quer que tal banda “vire rodoviária”, que gosta da ideia do “aquele autor que mora numa portinha que você não dá nada”, a popularização de um artista costuma ser algo legal não apenas pra ele (sempre bacana ganhar um dinheiro, receber um reconhecimento, ter a possibilidade de se perder nas drogas) como também interessante pro público (nem todo mundo tá aí na Serra Pelada da cultura garimpando conteúdo, tem gente que precisa ler um artigo, topar com uma resenha, quem sabe ver um anúncio).
Bryan Lee O’Malley foi um quadrinista que eu “descobri” acompanhando sites sobre HQ, um pouco depois que “Scott Pilgrim” já tinha estourado mas um pouco antes de ter estourado tanto que virou um filme - e agora vai voltar como um anime, com dublagem de todo elenco original, lance bem bacana. E pelo processo que sempre acontece quando você conhece um artista que está surfando uma onda gostosa, surge o hábito de acompanhar o que ele fizer depois (“Seconds” é excelente e “Snot Girl” é uma viagem das mais interessantes) e também tentar descobrir o que ele estava fazendo antes.
E é aí que entra “Lost at Sea”, a história de uma menina que acredita não ter amigos porque não está viva de verdade, já que sua mãe teria vendido sua alma em troca de sucesso profissional - a alma estaria agora em um gato. Ah, e a HQ se passa quase toda numa viagem de carro. Mas mais do que sobre pactos com o diabo ou postos de gasolina ela é uma história muito bonita sobre solidão, conexões e a busca por entender a si mesmo, ainda mais numa época complexa com a adolescência. Muito boa pra quem já se sentiu muito confuso ou apenas gosta de ver gente perseguindo gato pela rua.