Sofia Coppola e Mike Tyson entram em um bar
Sofia Coppola admitiu recentemente que “Maria Antonieta”, seu filme de 2006, foi uma grande flopada de sua carreira. O estúdio investiu 40 milhões na produção e arrecadou apenas 60 milhões — o que aparentemente caracteriza um flop, segundo os padrões de Hollywood, vai vendo.
Além disso, no dia da estreia em Cannes, vaiaram o filme. Também pudera, “Maria Antonieta” é uma adaptação da biografia escrita por Lady Antonia Fraser, uma senhorinha monarquista britânica, biógrafa e memorialista da aristocracia europeia.
Como esperar que a França, um país que forjou sua identidade nacional cortando cabeças de reis, rainhas e aristocratas, se sensibilize com um filme com evidentes simpatias monarquistas?
Galera também força a amizade, né, plmdds.
Mas mesmo com esse começo acidentado, no longo prazo “Maria Antonieta” se tornou um dos filmes mais cultuados da carreira da diretora.
O que nos lembra de uma anedota maravilhosa dita em “Tyson”, excelente documentário de 2008 sobre Mike Tyson. Em um dado momento do filme, ele comenta que horas antes de sua primeira luta profissional, o bicho ficou com tanto medo, mas com tanto medo, que chegou a cogitar a sério pegar um trem e simplesmente fugir para bem longe e fingir que nada daquilo era com ele.
Longe da gente querer ser o chato da positividade tóxica, ou meter aqueles papos cafonas de coach, mas talvez exista alguma lição aí nesses dois casos: a de que, não importa o tamanho do seu medo ou da sua insegurança, se você abraça a sua vocação, que pode ser morder a orelha de outros lutadores ou retratar o drama existencial da mulher branca, as coisas acabam dando certo no final.
A Conforme Solicitado é, apesar de nossos muitos medos e inseguranças, essa crença e, como já dissemos, esse salto de fé. Obrigado demais pela companhia.
Na edição de hoje Gabriel, além de comemorar aniversário, fala sobre arte com mensagem, Arnaldo sobre o festival The town e o excesso de sensibilidade dos artistas e João sobre o terror que é depender de redes sociais pra se sustentar.
Também temos, é claro, cartum do Arnie e as dicas da redação.
Melhorias sempre, minha tropa.
Arte com mensagem
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Lembro de ler naquela antologia de entrevistas do Woody Allen, organizada pelo Eric Lax, que houve uma enxurrada de críticas de padres, e de cristãos de um modo geral, após o lançamento de “Crimes e Pecados”, o filme de 1989 de Woody Allen que Paulo Francis uma vez definiu, e aqui cito de cabeça, como “o filme europeu que eu e muitos outros dissemos que ele nunca faria”.
O plot resumido é assim: médico da alta sociedade (Martin Landau) é ameaçado de ser revelado como adúltero pela amante (Angelica Houston), daí depois de algumas idas e vindas opta por matar a amante.
No final do filme há um diálogo em que o personagem de Landau sugere, de modo mais ou menos oblíquo, que ter mandado matar a amante lhe tirou duas ou três noites de sono, mas logo em seguida não havia qualquer crise de culpa ou de consciência mas, ao contrário, apenas o alívio da resolução de um problema.
“Crimes e Pecados” é uma homenagem de Woody Allen ao Dostoiévski de “Crime e Castigo”, mas uma versão secular, subtraída do moralismo cristão. Da mesma forma, aliás, que “Match Point” retomaria a mesma ref literária em 2005, mas dessa vez sem o contraponto cômico que há no filme de 1989.
O ponto no qual quero chegar é que a porrada que Allen tomou pós-MeToo, na esteira do retorno das acusações feitas por Mia Farrow, ainda nos anos 1990, foi muito parecida em tom e substância com a que conservadores cristãos deram, a propósito de “Crimes e Pecados”.
Em ambos os casos os dois grupos propuseram, ou tentaram propor, uma equivalência moral entre arte e biografia.
Veja, repare que não estou entrando em momento algum no mérito das acusações feitas por Farrow, mas apenas no tipo de estrutura argumentativa apresentada por seus defensores — uma variação de algo mais ou menos assim: se a arte do broder é tão niilista, como supor que seu comportamento privado seja pautado pela rigidez de qualquer código moral?
Essa é uma formulação que talvez lhe soe paroquial e boba, mas mesmo o formalista mais comprometido, o esteta mais radical, em algum momento vai ser obrigado a reconhecer que qualquer criação ficcional é um bagulho municiado por determinado conjunto de ideias — ideias essas que apontam para alguma direção moral, e para algum discernimento daquilo que é vício e virtude.
Quer dizer, não é que estejamos falando de personagens e de obras que funcionem, ou que precisem funcionar, como uma ferramenta de “educação moral”, nada cafona e conservador desse tipo, mas como um camarada disse não tem tanto tempo:
Além disso, a galera da Nova Crítica que se aboletou nos departamentos de Inglês das universidades norte-americanas, a turma da crítica pós-colonial, feminista etc., a mesma galera que queria romper com os parâmetros supostamente exclusivamente estéticos da geração anterior, e denunciar as relações de poder subjacentes, enriqueceu o debate, sem dúvidas o sofisticou e o tornou mais complexo, mas ironicamente acabou caindo igualmente em uma camisa de força de uma rigidez moral prescritiva, ainda que mais escondidinha e discreta.
Uma rigidez moral prescritiva no sigilinho, se você preferir.
O negócio é que, mesmo depois de décadas e mais décadas de Nova Crítica no lombo, ainda nos pegamos procurando “arte com mensagem". Em algum lugar, Tolstoi sorri.
Súbita possessão
Arnaldo Branco
Sensibilidade e autodefesa
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
No último fim de semana rolou o festival The town, um evento que é uma espécie de campo de teste do capitalismo pra saber até quanto o público jovem aguenta preço abusivo e serviço ruim — e onde muitas vezes a escolha do elenco cumpre uma função parecida.
Ops, brincadeira. Na verdade eu nem tenho muito como comentar o lineup porque tem certas coisas que eu nem perco meu tempo ignorando. Mas é verdade que sempre aparece gente levando a sério sua lista de desgostos, geralmente com muito tempo livre pra ficar na internet tentando emplacar piada maldosa sobre artista que não curte — o que por mim tudo bem, cada um com os seus hobbies.
Mas como sempre, rola o contra-ataque: os fandoms trabalhando dobrado para identificar e expor a galera que manifestou seu desagrado com a apresentação — ou com a mera existência — dos seus ídolos. Tenho que confessar que nunca entendo essa defesa apaixonada, acho que é meio como dar atenção demais pra um maluco da pracinha, além de também acreditar que não faz muito sentido tomar as dores de gente com dinheiro o bastante pra pagar advogado mas enfim, ok também.
Só que dessa vez também rolou uma adesão em bloco dos próprios artistas, que ficaram no twitter tratando qualquer meme zoando algum dos seus pares como se fosse um ataque do gabinete do ódio, mantendo uma corrente de solidariedade de fazer inveja pra esquerda, no momento dividida entre gente que gostaria de ver uma ministra negra no STF e uma galera que acredita que essa na verdade é uma demanda da CIA e do George Soros.
Eu não sei se isso tem a ver com a substituição da dita crítica especializada pela cultura de press release dos influencers, mas aparentemente os artistas desaprenderam a lidar com o contraditório. Deveria acontecer o contrário: quando todo mundo tem como se manifestar sobre seu trabalho e quando você praticamente não tem como fugir dessas manifestações, acredito que você deveria tentar desenvolver melhor seus filtros — sem contar criar um certo couro de jacaré.
Pegar ar e ficar rebatendo anônimo com avatar de anime em rede social dá a impressão que a sua arte não sabe se defender sozinha. Bom, às vezes o caso é esse mesmo.
A artista não apenas está presente como parece bem chateada e xingou alguns desconhecidos nas redes sociais
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
A atividade de divulgação sempre foi uma parte praticamente indispensável de todo tipo de trabalho, mais ou menos desde quando surgiu o conceito de trabalho – um dia terrível, obviamente, mas acho complicado querer criticar uma mulher por comer uma maçã que foi oferecida por uma cobra falante, já que sinceramente ninguém pode garantir como reagiria diante de nenhuma recomendação alimentar feita por um bicho que fala, sei lá, imagine você chegar no hortifruti e um rinoceronte dizer “prova esse kiwi, tá bonzão”, eu não posso garantir como lidaria.
Mas voltando ao assunto. O ferreiro medieval precisava de algo pra sinalizar que ali ele estava colocando ferradura em cavalo, a hospedaria colocava uma placa pra galera saber que eles alugavam camas, num processo que foi avançando junto com o nosso progresso social e tecnológico. Lojas passaram a ter letreiros, revistas passaram a ter anúncios, programas de televisão a ter propagandas, pessoas a usar coletes dizendo “compro ouro”, algo que você não imaginava que sobreviveria a todos os períodos de tempo citados anteriormente.
E ainda que essa divulgação tenha se tornado mais e mais intensa e uma parte cada vez mais importante de todas as indústrias e áreas de atuação, indo desde as colossais verbas de publicidade dos grandes filmes – muitas vezes o mesmo valor gasto realmente fazendo o filme – até todo o dinheiro movimentado por compra e venda de dados apenas pra que mais publicidade possa ser feita – hoje em dia você não compra dipirona numa farmácia sem que te perguntem CPF, signo e o quanto você está animado pra ver a próxima série da Maísa na Netflix – a verdade é que nada nos preparou pro atual estado da divulgação nas redes sociais.
Isso porque se antes apenas grandes marcas precisavam fazer grandes esforços de divulgação, com a ascensão das redes sociais se tornou quase obrigatório que todo profissional atue também como social media de si mesmo. Numa época em que pessoas escolhem médico usando Tiktok como critério, não basta fazer obra, é preciso gravar um vídeo divertido da obra; não adianta desenhar, é preciso mostrar sua rotina de desenhista; não adianta esculpir todo o elenco de Seinfeld num grão de arroz, você vai ter que postar uma foto meio sensual na piscina se quiser mesmo gerar engajamento e vender escultura.
E quando você soma a isso a pressão por interação constante com seu público, você gera, obviamente, uma série de consequências mais ou menos desagradáveis. Primeiro que surge uma carga extra de trabalho, já que agora a dermatologista não pode apenas colocar seu nome na lista telefônica e focar nas consultas, ela precisa também produzir um reels com a dança do cravo espremido e isso toma tempo. Depois você tem uma clara distorção contextual porque sabemos bem que nem sempre a pessoa que é melhor em divulgar o próprio trabalho é também a melhor em realizar esse trabalho, como qualquer livro sobre a relação entre Stan Lee e Jack Kirby pode demonstrar.
Por fim, existe sempre algo meio triste nos níveis quase obrigatórios de presença virtual exigidos de pessoas das mais diversas áreas profissionais, que parecem não ter condições, preparo ou mesmo capacidade emocional de lidar com essa situação. Seja a vovozinha doceira precisando pedir ajuda dos netos pra fazer um Insta, seja a pessoa tímida que perde oportunidades porque não sabe se vender no Linkedin, seja a cantora pop que derrete em rede social porque não consegue lidar com os memes zoando ela, a verdade é que provavelmente todo mundo seria um pouquinho mais feliz se pudesse usar redes sociais mais porque gosta e menos porque precisa.
Mas como certas coisas são irreversíveis e nesse processo não dá mais pra voltar atrás, semana que vem postaremos aqui o Tiktok com a nossa dancinha das assinaturas premium. Não ficou muito bom, mas até um dos caras topar fazer um ensaio sem camisa é o que a gente tem pra oferecer.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Because of you, I know where I belong
Gabriel Trigueiro
A dica desta semana é o show de uma das minhas bandas favoritas, Warpaint, na edição deste ano do festival Pinkpop, na Holanda. O tempo voa absurdamente, essa é uma verdade incontornável, e ano que vem o grupo já faz 20 anos de estrada.
Tudo começou como uma iniciativa de duas amigas de infância na Califórnia, Theresa Wayman e Emily Kokal, que foi crescendo até chegar onde chegou. Ainda bem, né.
Warpaint é uma banda de art rock, com influências de dream pop e shoegaze. É uma turma que já trabalhou com gente como John Frusciante e Nigel Godrich. Ninguém tá de bobeira, perceba.
Esse show aí no Pinkpop tá bonitão — é curtinho, mas o setlist tá o fino e a banda tá completamente à vontade. Atenção à baterista Stella Mozgawa, que só falta fazer chover nesse show.
É uma excelente porta de entrada para o som delas, se é que você ainda não as conhece. Vai fortão.
Herói sem testemunha
Arnaldo Branco
Sou roteirista e às vezes revejo filmes que podem me ajudar com algum projeto. Essa semana terminei uma série em que duas histórias correm paralelas: a saga de um homem em outro país para abrir oportunidades para membros de sua família, que vivem seus próprios dramas no Brasil.
Logo lembrei de “Os eleitos” (1983) de Philip Kaufman, baseado no livro-reportagem do Tom Wolfe, e que conta a epopéia dos primeiros astronautas do programa espacial americano ao mesmo tempo em que mostra os feitos de Chuck Yeager (Sam Shepard), um piloto que fica forçando os limites de aeronaves no deserto de Mojave para ajudar no desenvolvimento da mesma tecnologia que vai possibilitar que seus colegas cosmonautas cruzem a estratosfera, ganhem toda a fama e os desfiles de papel picado.
O filme carrega bem a tarefa de mostrar a loucura daqueles anos, onde por causa de uma disputa sem sentido com a União Soviética pela exploração de um território no vácuo onde ninguém poderia habitar, homens se metiam em missões suicidas em nome de um patriotismo de fachada. Grandiosamente filmado, com grandes atuações.
E tenho que confessar que às vezes penso em “Os eleitos” como uma metáfora para a minha carreira de roteirista de sucesso relativo, ou seja: vendo meus colegas fazerem sucesso de verdade enquanto quebro recordes no deserto. Kkkkkkcrying.
“12 Homens e uma Sentença” teve um filho com “O Show de Truman” e deu pro Nathan Fielder criar
João Luis Jr.
Uma coisa que sempre me assustou no conceito de festa surpresa é a ideia de que, se minha família e meus amigos conseguiram combinar uma festa pelas minhas costas sem que eu notasse, eles também poderiam facilmente estar combinando qualquer tipo de crime, violência ou golpe do seguro contra minha pessoa sem que eu fosse capaz de perceber. E ainda que não seja exatamente essa a premissa, isso é um pouco da lógica que guia a série “Jury Duty”, que acaba de chegar na Amazon Prime - e já tem bastante gente falando, por sinal, tava aqui todo me sentindo pioneiro e cortaram minha onda.
Centrada no conceito da gravação de um documentário sobre um julgamento em que todos são atores menos um dos jurados, que acredita estar em um tribunal de verdade, a série consiste numa grande escalada de absurdos e bizarrices, quase sempre visando ver o quão longe eles conseguem ir sem que a única pessoa que está levando aquela situação toda a sério perceba que nada daquilo pode ser real.
Com um elenco formado em grande parte por desconhecidos, o destaque fica para James Marsden, mais famoso como o Ciclope dos primeiros filmes dos X-Men (ainda que ele diga que nunca é pra começar falando sobre X-Men), interpretando uma versão de si mesmo que adora falar da própria carreira e critica as pessoas por verem “Sonic” no streaming ao invés de alugar ou comprar (“se você tivesse comprado rendia um dólar pra mim”), numa atuação que rendeu sua primeira indicação para o Emmy, o Troféu Imprensa da televisão americana.
Se você é dessas pessoas que cresceram assistindo pegadinhas e tem uma simpatia por coisas como o trabalho do amigão Nathan Fielder, “Jury Duty” é uma ótima opção para vivenciar momentos de comédia, constrangimento e ver pessoas dizendo que assistiram “Diário de uma Paixão” mas não lembram de ninguém além do Ryan Gosling e da Rachel McAdams.