Conforme solicitado #57
Vamos viver apenas algumas das coisas que há pra viver, não vamos nos permitir tanto assim
São diversos os conceitos e produtos artísticos que, ainda que bonitos e bem intencionados, acabaram causando certo dano ao tecido da nossa sociedade.
Por conta da série “House” muitas pessoas começaram a achar que se fossem muito inteligentes poderiam ser insuportáveis, ignorando o fato de que várias delas não eram tão inteligentes e mesmo a pessoa mais inteligente do mundo não pode ser tão insuportável assim. Por conta de inúmeras comédias românticas americanas foram criadas expectativas irreais sobre relacionamentos e que casais durante brigas conseguiriam oferecer respostinhas engraçadas e irônicas, enquanto a moça que eu vi discutindo com o namorado no Hortifruti um dia desses falava apenas “você vai ver, seu fudido”.
E no campo nacional, poucos conselhos foram mais irreais e danosos do que o trecho da canção “Tempos Modernos”, em que Lulu Santos convoca toda a sociedade a “viver tudo que há pra viver” e a “se permitir”.
Porque assim, pra começo de conversa, “tudo que há pra viver” é muita coisa. Dá pra viver acidente envolvendo charrete, dá pra viver tentativa de tirar bagagem de avião e ela cair na sua cabeça, dá pra viver viver reunião da firma que dura quatro horas com um cidadão lendo um Powerpoint, dá pra viver a experiência de reformar um apartamento alugado e aí gravar um vídeo reclamando porque não deu certo. Tu quer viver isso? Não acho que tu queira não.
E “se permitir” é legal, claro. Mas numa média, se você for reparar, só é legal quando quem se permite somos nós. Afinal, imagina todo mundo se permitindo, ao mesmo tempo. Tu tá na fila, geral na sua frente se permitindo. Você no trânsito, travado porque o motorista de ônibus se permitiu. Dedo quebrou, plantão da ortopedia? Perdão, amigo, Doutora Vanessa hoje tá se permitindo demais, nem sabemos que horas ela volta.
Por isso a mensagem da Conforme dessa sexta é: não se sinta obrigado a viver tudo que há pra viver e, se for se permitir, pode se permitir suave, não precisa sair se permitindo tanto não, esse papo de viver como se não houvesse amanhã é coisa de agiota, não cai nessa.
Mas nessa edição o Gabriel se permitiu sim falar sobre “The Righteous Gemstones”, assim como Arnaldo viveu tudo que há pra viver pra depois lamentar que a galera vem exagerando no governismo e o João tava mexendo com coisa de cartório esses dias, Lulu não aprovaria. Também nos permitimos as dicas, o famoso cartum e, claro, estamos nos permitindo te lembrar da opção de fazer aquela assinatura premium por apenas 15 reais mensais e contando que você também tenha a famosa habilidade pra dizer mais sim do que não pra gente.
Curb your governismo
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Sou roteirista do Greg news, um programa de comédia feito em cima do noticiário, que não raro simplifica nosso trabalho produzindo conteúdo em forma de piada pronta. O primeiro episódio de 2023, exibido em abril, alertava para o erro que seria gastar uma indicação para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal com o advogado Cristiano Zanin, um sujeito conservador e que se veste como um coroinha que começou tarde na carreira.
É claro que aquilo que a gente chama de erro o Lula e membros do governo podem defender que é estratégia, embora qualquer cálculo feito em cima de um cargo que só vai expirar em 2050 seja um tanto arriscado. Mas não é proibido desejar que as coisas se aproximem um pouco mais do ideal e que um governo progressista dê mais espaço para, bem, progressistas.
O fato é que depois que Zanin assumiu seu posto e enfileirou uma série de votos lamentáveis voltamos ao assunto para exercer nosso direito de fazer uma das coisas mais satisfatórias permitidas ao ser humano, que é dizer “eu avisei”. Mas não só isso: diante da abertura de uma nova vaga no STF, incitamos o governo a dessa vez dar preferência a uma mulher negra progressista — uma demanda de várias organizações do Movimento Negro que a gente encampou.
Foi o bastante pra um povo na internet surtar e dizer que estávamos — juro que usaram esse termo — chantageando o governo, e que somos financiados por ONGs estrangeiras que desejam criar o clima para uma nova Operação Lava Jato. Quem lê isso pensa que no programa a gente ameaçou revelar algum podre do Lula em troca da nomeação, mas a gente só linkou um site onde você pode mandar uma mensagem para a assessoria da presidência pedindo pra ele considerar a proposta.
É o tipo de campanha que representa uma ameaça tão grande ao governo quanto um abaixo assinado do avaaz ou uma nota de repúdio — mas assim como nesses casos não custa nada tentar. Se disparo de email é uma ferramenta de pressão assim tão eficaz quero uma auditoria em ações parecidas da época em que a gente pediu o impeachment do Bolsonaro e que movimentaram (inutilmente) milhões de pessoas.
Todo mundo entende que é preciso fazer alguns sacrifícios em nome da governabilidade, mas abrir mão do pensamento racional não é um deles. Lula, um cara que pegou duas cadeias, comandou uma greve histórica e é obrigado a negociar com um congresso que o arrombado do eleitor brasileiro só ajuda a piorar deve olhar pra essa galera que trata ele como um cristal delicado e dizer “eu, hein”.
Succession, só que na igreja
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
É produção original HBO e tal, aquele selo de qualidade que eu e você tanto gostamos, mas não me lembro de nenhum amigo falar de “The Righteous Gemstones”, ou de recomendar “The Righteous Gemstones”.
Mas afinal, o que diabos é “The Righteous Gemstones”?
É uma série criada por Danny McBride, sobre uma família disfuncional (ah, os pleonasmos) de televangelistas de sucesso, os Gemstones. Dr. Elijah "Eli" Gemstone é o patriarca, interpretado magistralmente por John Goodman.
Eli é viúvo de Aimee-Leigh, a mulher com quem criou um império movido a fé e dinheiro. Seu luto, ou melhor, sua incapacidade em elaborá-lo, transforma a ausência de sua esposa em uma das presenças mais marcantes ao longo da primeira temporada. Eli tem três filhos que trabalham com ele.
Jesse Gemstone, seu filho mais velho, vivido pelo próprio Danny McBride, é um pastor arrogante e truculento.
Kelvin Gemstone é o mais novo, interpretado por Adam DeVine, é pastor da juventude e luta para ser levado a sério pelo clã.
A melhor personagem, no entanto, é Judy Gemstone, interpretada por Edi Patterson — a filha do meio que sofre ao lidar com a estrutura essencialmente patriarcal não apenas da família, mas igualmente do modelo de negócios dos Gemstone.
E, na moralzinha, o que é o personagem do Walton Goggins? Pelo amor de Deus, que figura repulsiva e encantadora.
Recentemente maratonei a primeira temporada e no momento estou na internet pisando em ovos, evitando tomar um spoiler no meio da fuça com o mesmo cuidado de quem joga Campo Minado.
É uma série que tem muito de Fargo, não tanto do filme dos Irmãos Coen, mas mais ainda da série baseada no filme — o tempo do humor, o uso da violência, a construção dos personagens e mesmo o desenvolvimento da trama.
“The Righteous Gemstones”, repito, tem uma vaibezona gostosa de Fargo, de disputa familiar shakespeariana tipo Succession, e um tantinho assim de Sopranos.
Vai na fé, jogador. E quando digo “fé”, eu falo bem sério.
Spirits in the material world
Arnaldo Branco
Inevitável só a morte e os emolumentos do 22° Ofício de Notas da Comarca da Capital do Rio de Janeiro
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Se você é uma pessoa já na segunda fase da sua vida adulta, ali acima dos 35 anos, você provavelmente já foi a um cartório. E se você ainda não foi, provavelmente, em algum dado momento, você vai se ver obrigado a ir.
Porque uma coisa sobre os cartórios é que eles não podem ser evitados. Você nasce? Alguém vai ter que ir num cartório. Você morre? Alguém vai num cartório. Você casa? Cartório. Você compra uma casa? Cartório. Vendeu carro? Cartório. Você precisa transferir para outra pessoa uma passagem aérea que você comprou de maneira absolutamente virtual, sem precisar interagir com nenhum ser humano? Você, por alguma razão, também vai precisar ir a um cartório.
E esse é um dos outros superpoderes que o cartório tem: o de oferecer um entreposto de burocracia e sofrimento no caminho para diversas grandes ou pequenas conquistas pessoais. Está feliz porque vai casar? Espere até o cartório confundir os seus papéis. Está eufórico porque realizou o sonho da casa própria? Pera que alguém tá vindo te falar o valor da taxa de registro. Tem um problema que pode ser resolvido só assinando rapidinho um papel? Não apenas vai precisar reconhecer firma como tem essa declaração aqui que você não trouxe e vai precisar passar em outro cartório pra tirar, prazo de três dias úteis.
Porque todo cartório é, acima de tudo, um grande esquema de pirâmide. Você chega em um cartório para registrar uma coisa e descobre que antes precisa registrar outra coisa, em outro cartório, onde vão te informar que existe um terceiro cartório onde você precisa ir, pra tirar uma documentação que é essencial para poder voltar ao segundo cartório e só aí poder retornar ao primeiro cartório, onde você chegou achando que já tinha tudo. Prazo? Três dias úteis. O lance do terceiro cartório, claro. E mais três dias úteis em cada um dos outros cartórios.
E mesmo que as taxas possam variar absurdamente, de serviços que custam vinte reais até outros em que você vai morrer em mais de mil, nenhum dos cartórios vai aceitar cartão, e se algum aceitar, vai ser aquele onde você precisa pagar só 20 reais, nunca o de mil. Porque essa é outra das funções do cartório: rejeitar a modernidade e abraçar tudo que existe de mais confuso e torturante na tradição.
Afinal, o cartório, conceitualmente, já é algo de medieval. Um ambiente onde se guarda assinaturas, onde se carimbam papéis, onde, numa época em que qualquer celular ou caixa eletrônico tem reconhecimento por digital, um homem atrás de um balcão cobra pra olhar uma folha onde você assinou seu nome e dizer “é, foi ele mesmo que escreveu”. Um local que exige o presencial onde tudo é virtual, uma ilha de atividade humana na era do ChatGPT, um mundo onde a velocidade da fibra óptica não chega, porque o prazo é esse, três dias úteis, senhor. Não, não tem como acelerar, esse é o prazo.
E talvez essa seja a verdadeira missão de todo cartório: nos lembrar o quão longe já chegamos, enquanto espécie. O papel está ali para nos fazer valorizar o computador. A burocracia para nos lembrar que nada é conquistado sem esforço. A lentidão para que apreciemos todas as outras coisas da vida que temos autonomia para fazer mais rápido. Ou isso ou apenas estamos diante de uma máfia cartorial que, com a conveniência do estado, vive de pequenas extorsões que poderiam tranquilamente ser evitadas com uma mínima modernização da maneira como registramos as coisas. Seja como for, o prazo segue sendo três dias úteis. A moça disse que não tem mesmo como adiantar.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Lendário
Arnaldo Branco
Tenho um truque para evitar aquela clássica perda de tempo procurando alguma coisa pra assistir em catálogo de streaming: dar play em um documentário de esporte. Geralmente é uma trama sobre um curto período cheio de acontecimentos épicos na vida de um atleta — que você pode admirar ou não, às vezes nem conhecer — e que não te faz sentir maiores culpas quando esquece praticamente tudo uma semana depois.
Nesse sentido a série “30 for 30” da ESPN surpreende, muitas vezes indo além da abordagem típica de ascensão, queda e redenção apresentada nesse tipo de material. O selo já produziu coisas como “Catching hell”, sobre um torcedor que atrapalha um lance num jogo do Chicago Cubs e contribui para a perpetuação de uma escrita que custou décadas sem títulos e “June 17th, 1994”, que mostra o dia em que o mundo parou para acompanhar a caminhonete de O.J. Simpson fugindo da polícia de Los Angeles.
O episódio que vou recomendar (“You don’t know Bo”) nem é muito cheio de teses, é baseado em cenas de arquivo e talking heads contando uma história linear, mas quem é realmente grandioso é o objeto de estudo: o jogador de futebol americano e de beisebol Bo Jackson. Sim, ele praticava as duas modalidades, cujas temporadas são disputadas em semestres revezados, mas isso nem era o mais impressionante a respeito do cara — outros jogadores já fizeram isso.
O gigantesco nele era a lenda. Bo não ganhou nenhum campeonato importante, não bateu recordes, nunca foi eleito o melhor de uma temporada — até porque escolheu equipes para defender a partir de valores morais tão rígidos quanto inescrutáveis e não por conta do potencial delas para lhe garantir grandes conquistas. Pior: teve uma carreira curta, abreviada por uma séria contusão no quadril.
Mas suas capacidades atléticas eram tão evidentes que todo mundo que o viu jogar tem uma história bizarra sobre o que conseguia fazer com a tremenda força dos seus braços e a sua velocidade fora do normal. Durante sua carreira Bo Jackson foi um super-herói da vida real, com um mito de origem fantástico e feitos que fazem a lenda ficar ainda maior.
Too black for the white kids, and too white for the blacks
Gabriel Trigueiro
“Doris”, disco de estreia de Earl Sweatshirt, está completando 10 anos. Volta e meia falo aqui nessa seção de dicas sobre o coletivo de artistas Odd Future, mas paciência: sou repetitivo mesmo. Como fingir costume com um bonde responsável por revelar gente como Tyler, the Creator e Frank Ocean? De todo modo, hoje eu gostaria de falar do Earl Sweatshirt, o garoto prodígio dessa tropinha.
Filho de uma mulher ativista dos direitos civis e professora universitária com um famoso poeta sul-africano, Earl compôs em seu disco de estreia versos confessionais, com uma habilidade literária invejável. A produção do disco foi assinada por gente como a galera do BADBADNOTGOOD, Frank Ocean, RZA e o próprio Tyler.
Quando Earl lançou “Doris”, os críticos notaram a engenhosidade das rimas do bicho. Pense por exemplo nestes versos: “So don't tell me that I made it, only relatively famous / In the midst of a tornado, misfitted, I'm Clark Gable”.
Depois de “Doris” Earl lançou três excelentes discos: “I Don't Like Shit, I Don't Go Outside” (2015); “Some Rap Songs” (2018) e “SICK!” (2022).
Todos eles álbuns incríveis, que apontam para um caminho de inegável maturidade artística. No entanto, aproveite essa efeméride de uma década do lançamento do seu disco de estreia e mergulhe de cabeça em “Doris”.
De preferência com uma aba do seu navegador aberta no Genius, para poder apreciar com a atenção e o carinho devidos a capacidade de composição do moleque.
Mesmo se você já viu muita coisa eu acredito que você não tinha visto algo assim
João Luis Jr.
Um boxeador treina uma equipe de ursos para dominar o mundo porque se ele dominar o mundo vão ter que devolver o título de campeão de boxe dele, mas ele é atacado por um grupo de super-heróis, agredindo um deles com tanta intensidade que a cabeça do herói fica inchada, precisando ser posteriormente substituída pela cabeça da vaca fantasma que ele conheceu no grupo de apoio que ele fazia parte.
E não só isso, mas também bisões, disputas pela guarda de crianças, um personagem chamado “Almirante Tigre Comendo um Cheeseburger” e tentativas de impedir que fazendeiros usem foguetes caseiros para sair da atmosfera terrestre, você encontra nos 3 primeiros volumes de “God Hates Astronauts”, um dos mais alucinados e brilhantes gibis publicados nos últimos anos.
Com roteiros e criação de Ryan Browne e publicada pela Image Comics, é dessas coisas que desafiam qualquer ideia de que tudo que podia ser feito com quadrinhos já foi realizado, além de desafiar várias outras ideias sobre lógica narrativa, como o corpo humano funciona ou mesmo o que seria exatamente a NASA. É absurdo, frequentemente sem sentido, mas absolutamente divertido e oferece entretenimento de muita qualidade.