Conforme solicitado #56
Ato de fé
O ato de escrever sempre teve uma aura de charme: quem nunca imaginou ser um autor consagrado espancando as teclas de uma máquina de escrever posicionada entre uma garrafa de conhaque e um cinzeiro transbordando de guimba de cigarro? Bem, esse sonho é anterior ao processador de texto digital, portanto velho, bem como a noção do que era charme. Imagina só o bafo de Dreher e Derby vermelho desse autor consagrado.
Mas de uma profissão super restrita, que tinha uma relação candidato-vaga muito desproporcional, considerada uma atribuição de poucos iluminados pelo talento ou por um mecenas, o ofício de escritor virou mais uma das ocupações precarizadas pelo capitalismo tardio. Tem muita gente escrevendo, disputando a atenção de poucos leitores como um motorista de Uber singrando o asfalto atrás de clientes na madrugada de um evento flopado.
Portanto começar uma newsletter em trio, onde o autor mais jovem já tem trinta e alguns anos é um salto de fé, como dizem os gringos. A gente joga essa garrafa atochada de texto e arquivos .jpg na praia e espera que ela singre os mares, evitando maremotos e a sua caixa de spam até chegar até você, Conformer. E é por isso que de novo a gente lança o apelo para que nossos bravos assinantes considerem colaborar com um qualquer — que na verdade é uma expressão equivocada já que trabalhamos com uma tabela fixa (R$ 15 mensal, R$ 150 anual ou R$ 250 anual plus).
É isso. Nesse número Arnaldo escreve sobre o que se convencionou chamar “síndrome do impostor”, Gabriel fala sobre o gigantesco Cornel West e João sobre a galera na internet que curte ostentar ignorância ou pioneirismo. Além disso temos: cartum, dicas e a mesma sensação do dever cumprido de um chofer de aplicativo que finalmente bota o endereço de casa no Waze.
Síndrome de impostor
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Hoje em dia está na moda o autodiagnóstico de transtorno mental, quando a pessoa decide que é neurodivergente como quem escolhe skill de personagem no videogame, muitas vezes pra justificar algumas condutas reprováveis que o indivíduo em questão não consegue deixar de reproduzir. E o pior é tentar lembrar de todas as siglas: TDI, TDAH, TOC, TEA, parece aquela galera que chama série de TV pelas iniciais; você perde alguns minutos tentando lembrar que OITNB é Orange is the new black.
Mas tem um fenômeno ainda mais difundido que é o de botar uma etiqueta de patologia em sentimentos bem específicos, numa espécie de rebranding como o que os hipsters fizeram com os pratos de comida. Nessa categoria uma das mais populares é a síndrome de impostor, que é aquilo que você sente quando está incerto a respeito do talento que possui para uma determinada atividade, geralmente artística.
O problema é que o nome “síndrome do impostor” já trai uma certeza íntima de que na verdade você nasceu sim para aquela atribuição — e o fato de que de vez em quando seu subconsciente sussurra uma noção contrária só pode ser resultado de uma condição clínica. A verdade é que essa sensação tem um nome muito mais simples, insegurança, e acomete todo mundo que não é psicopata.
Além do mais só faz sentido se achar um impostor se você de fato consegue viver incólume, sem ser percebido como tal pelo escrutínio dos outros, coisa que fica mais difícil quando você ainda não fez nenhum sucesso. Que síndrome de impostor é essa se você não está enganando ninguém?
Mas esse não é um texto para atacar quem acha que possui um distúrbio que funciona como se alguém tivesse instalado um pequeno crítico de arte no seu cérebro. Na verdade acho que ninguém deveria deixar de tentar viver de sua arte só porque desconfia do seu potencial, pois 1) ninguém precisa viver de acordo com a permissão dos outros 2) o sucesso artístico não tem nada a ver com mérito ou justiça 3) vamos todos morrer mesmo.
Outro dia viralizou uma dessas frases motivacionais de instagram que diz algo como “seja fã do trabalho dos seus amigos”. Bom, além de não desejar vida de artista pra ninguém eu também dispenso meus amigos da obrigação de serem bons no que fazem. Pra mim uma coisa rara e preciosa como a amizade não deveria ter um troço tão subjetivo quanto o talento como critério de eliminação.
Como diz a música dos Isley Brothers: it’s your thing, do what you wanna do. E aposto que agora eu instalei essa música no seu cérebro, o que é sempre bem melhor do que um pequeno crítico de arte.
Cornel West, o melhor que nós temos
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Embora seja um intelectual público com mais de 40 anos de atividade nas costas, por algum motivo que me escapa Cornel West não é tão conhecido no Brasil quanto deveria. Sim, claro, é um sujeito norte-americano pensando e lidando com questões tipicamente norte-americanas, mas sabemos que hoje em dia a política brasileira mimetiza, ou pelo menos adapta, a dos EUA em temas, formas etc.
West é um cara com um pensamento original: é um intelectual negro, socialista e cristão. Suas análises abordam desde temas relacionados àquilo que antigamente chamávamos de “alta cultura” até a cultura popular e de massas. Seu modo de enxergar a política é derivado da filosofia e da teologia — especialmente da teologia negra norte-americana.
Não tem muito tempo, deu uma viralizada uma entrevista improvisada do Cornel West ao canal de fofocas de celebridades TMZ. A pauta era uma declaração na qual Kanye West havia falado a respeito do “Mês da História Negra”, que segundo ele deveria se chamar “Mês do Futuro Negro”.
A ideia de Kanye, que depois apareceria formulada de modo ainda mais desastrado, equivocado e confuso (“Slavery was a choice”), era a de que o debate incansável sobre a escravidão nos EUA e o seu legado aprisionavam intelectualmente as possibilidades das pessoas negras no presente e no futuro. Nesse sentido, é interessante o contra-argumento de Cornel West:
Ohhh, Kanye’s wrong. Every performance is the authorizing of a future, in the midst of the present, trying to recover the best of the past. You get that in Kanye’s music, but you don’t get it in his rhetoric. There’s a sense in which his artistry is much more profound than his rhetoric.
Sério, olha esse troço aqui.
Cornel West acredita, à moda dos conservadores americanos, que os EUA estão atravessando um processo de “decadência espiritual”. Mas, diferentemente dos conservadores, crê que a causa dessa decadência é um capitalismo desregulado, que gera, a um só tempo, um hedonismo sem limites e a atomização dos indivíduos com a erosão dos laços comunitários — que, cada vez mais, caminham para a proverbial casa do caralho.
West se define como um “jazz man, um blues man” no mundo das ideias. Perdoa a citação longa, mas ela é necessária, vai por mim.
I’m a blues man in the life of the mind, a jazz man in the world of ideas. So, therefore for me music is central. So when you’re talking about poetry, for the most part when Plato is talking about poetry, you’re mainly talking about words. Whereas I talk about notes, tone, timbre. I talk about rhythms. See, for me, music is fundamental. Philosophy must not only go to school with the poets, but with the musicians . . . . My kind of blues begins with catastrophe, begins with the angel of history . . . with the pileage, the wreckage, one piled on another. That’s the starting point. The blues is personal catastrophe lyrically expressed. And [for] black people in America and in the modern world, given these vicious legacies of white supremacy, it is: how do you generate an elegance of earned self-togetherness so that you have a stick-to-it-ness in the face of the catastrophic, and the calamitous, and the horrendous, and the scandalous, and the monstrous.
Cornel West, a propósito, atualmente é candidato à presidência dos EUA pelo Partido Verde. Mas calma lá, esse é um assunto para outra hora.
Aqui no Brasil foi publicado pela Companhia das Letras um dos seus livros mais famosos, “Questão de Raça”. É uma excelente introdução ao pensamento de um cabra que deveria ser bem mais conhecido por aqui. Dá mole não, playboy.
Ou eu não conheço ou eu conheci primeiro
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
De todos os lugares para buscar a sensação de ser especial, uma rede social é provavelmente um dos piores. Um ambiente repleto de anônimos, controlado por algoritmos suspeitos, onde não existe nenhum senso de nuance e se você postar foto do sorvete que seu pai te deu alguém vai falar que foi comprado com o sangue e suor dos ancestrais dos outros. Em suma, rede social é um lance complicado.
Mas ainda assim, como é inerente ao espírito humano, a gente tenta. Tenta buscar a dopamina de uma chuva de likes na nossa foto, a serotonina de comentarem “falou tudo” na nossa postagem, a validação externa que você talvez não tenha recebido de pessoas mais relevantes na sua vida e então vai ter que vir através do ex-namorado da sua amiga assinando a sua newsletter mesmo, é o que tem pra hoje.
E entre todas as táticas de busca por essa sensação de ser “diferente de todo mundo” nas redes sociais, duas são fascinantes exatamente por buscarem caminhos diametralmente opostos para atingir o mesmo resultado.
Uma, como qualquer pessoa que já usou o artista anteriormente conhecido como Twitter já deve ter visto, é a de alegar desconhecer alguma coisa muito popular com a intenção de parecer mais culto ou descolado. MC Cabelinho? Não sei quem é. Filme de gibi? Nunca ouvi falar. Fred Nicácio ex-bbb? Perdão, não acompanho esse programa.
A ideia por trás disso é bem óbvia, claro. Ao sinalizar publicamente que desconhece os personagens da polêmica do dia ou os artistas/obras de cunho mais popular, a pessoa quer deixar claro que usa seu tempo e conhecimento para atividades mais nobres. Não, nada de MC Cabelinho para mim, só ouço sinfonias. Nome de super-herói? Impossível guardar, meu cérebro registra apenas sonetos de amor de Pablo Neruda. BBB? Não assisto, estou ocupado lendo livros. Vários deles. Dois ao mesmo tempo. Um em cada mão.
E ainda que seja obviamente justificável não conhecer qualquer coisa, incluindo celebridades e artistas – num mundo com cada vez mais pessoas famosas por cada vez mais motivos é impossível registrar tudo – existe uma palpável diferença entre não conhecer alguém e se sentir superior por não conhecer alguém, já que uma dúvida sincera você colocaria no Google, enquanto uma sinalização de superioridade, bem, pra isso sim serve o Twitter.
Já no espectro oposto, fica a necessidade de se posicionar como pioneiro ou desbravador quanto a um tema, área ou artista, numa espécie de “gatekeeping” cultural em que você obviamente é especial porque valorizou ou prestou atenção numa coisa primeiro. Você está gostando desse diretor agora? Eu gostava dele desde o primeiro curta-metragem. Você começou essa série enquanto ela está na segunda temporada? Eu via desde a estreia. Você gostou do disco do Xande Pilares cantando Caetano? Eu estava no banheiro dele na primeira vez que ele cantarolou Tigresa, tenho até a ordem de restrição judicial pra provar.
Tudo isso porque num mundo em que é tão complicado descobrir ou criar algo especial, muitas vezes o máximo que conseguimos é gostar ou nos associar a esse algo, numa sensação de superioridade que vai sendo diluída conforme cada vez mais pessoas gostam dessa coisa ou se associam a ela. Se o que me tornava especial era essa coisa que ninguém conhece, agora que todo mundo conhece, tanto eu quanto a coisa vamos nos tornando um pouco menos especiais – e o único recurso que sobra é sinalizar que ao menos eu gostei antes de vocês.
E ainda que se possa discutir o quanto disso é resultado de um ambiente virtual onde quase tudo é transformado em sinalização de status ou mesmo abordar questões mais profundas como a maneira com que o capitalismo nos tornou tão dependentes de coisas pra definir nossas identidades, a verdade é que após pensar que o pior havia passado quando não víamos mais tanta gente se achando superior por gostar de “rock”, vale a pena sim pensar no quão complicadinha está a nossa vida quando a gente precisa digitar “nunca ouvi falar de Biel do Furduncinho” ou alegar que “gostava de Besouro Azul antes de todo mundo” pra se sentir um pouco mais feliz. Eu mesmo estou muito reflexivo agora.
Novo gabarito
Arnaldo Branco
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Young, Latin and Proud
Gabriel Trigueiro
Hoje quero falar um cadinho sobre “This is How You Smile”, disco de 2019 do Helado Negro — nome artístico de Roberto Carlos Lange, um artista norte-americano, de ascendência equatoriana, que tem uma obra rica (musical, mas também nas artes visuais) em que explora sua identidade latina de formas bonitas e inusitadas.
“This is How You Smile” começa me pegando pela capa, uma festa de aniversário latina como muitas outras, que imediatamente bate bem no coração e me lembra dos meus aniversários dos anos 1980, feitos com todo o amor e carinho pelos meus pais e avós.
“This is How” é um disco de synth-folk que cria ambientes e texturas de uma manhã meio fria e nublada na praia. Evoca memória, deslocamento, amor, mas também (e principalmente) pertencimento.
O nome do disco é uma ref ao conto curto “Girl”, da autora caribenha Jamaica Kincaid, publicado em 1978 na New Yorker, em que uma mãe imigrante enumera uma série de conselhos para sua filha aprender a lidar com um mundo essencialmente hostil à sua presença e identidade de mulher latina — “this is how you sweep a whole house; this is how you sweep a yard; this is how you smile to someone you don’t like too much; this is how you smile to someone you don’t like at all” etc.
Em “This is How You Smile”, Helado Negro canta ora como quem dá esses conselhos maternos e amorosos e ora como quem os recebe, até porque no final somos mãe e somos filha.
Como outro artista latino exilado nos EUA já cantou uma vez, “To be free is to belong”.
Talvez os verdadeiros criadores sejam as pessoas que roubamos pelo caminho
João Luis Jr
Com a greve dos atores e roteiristas rolando nos Estados Unidos, com direito a executivo da Netflix dizendo que pagar remuneração digna por lá poderia abrir um perigoso precedente de ter que pagar remuneração digna no mundo todo, além de algumas situações bem esquisitas acontecendo com roteiristas aqui no Brasil, fica mais claro do que nunca o quanto as pessoas com mais responsabilidade na criação do entretenimento que a gente consome são as que recebem a menor parte dos lucros gerados por ele.
Se as coisas são assim hoje, no ano da graça de 2023, você pode imaginar como eram décadas atrás, quando os trabalhadores eram menos organizados, os espaços para reclamação eram menores, mas as corporações já eram tão gananciosas quanto hoje e o capitalismo já conhecia todas as manhas para separar ao máximo o criador dos frutos do seu trabalho.
E em poucas mídias isso aconteceu de uma maneira tão intensa e descarada quanto nos quadrinhos, onde hoje temos filmes bilionários girando em torno de personagens cujos criadores receberam muito pouco ou quase nada, muitas vezes morrendo sem nem mesmo receber créditos por suas criações, como se os personagens tivessem surgido do éter e não da cabeça de alguém.
Duas histórias que exemplificam bem isso são as de Bill Finger, o homem que basicamente criou o Batman como nós o conhecemos enquanto Bob Kane recebia todo o crédito, e Joe Schuster, co-criador do Super-Homem ao lado de Jerry Siegel, que na época do lançamento do primeiro filme do personagem, em 1978, ainda brigava para receber qualquer centavo da Warner por conta do uso do seu personagem nos cinemas.
E ambas as histórias foram muito bem contadas em HQ’s. “A história secreta do cavaleiro das trevas”, de Diego Moreau e Douglas Freitas, com arte de Sandro Zambi e cores de Ítalo Bispo, fala sobre como o homem que transformou o segundo maior personagem da DC comics em algo mais do que um plágio de histórias pulp, só recebeu crédito de co-criador em 2014. E “A história de Joe Schuster - O artista por trás do Superman”, de Julian Voloj e Thomas Campi, fala sobre as derrotas e vitórias do desenhista que ajudou a criar aquele que possivelmente é um dos mais populares personagens da história humana e lutou por décadas para ser devidamente pago por isso.
Ótimas leituras pra quem quer entender mais sobre a exploração que sofriam os criadores na era de ouro dos quadrinhos e também se irritar um pouco mais com a maneira absurda como são tratados hoje.
Exército de um homem só
Arnaldo Branco
Quando pego muito trabalho fico me sentindo culpado na hora de me dedicar a alguma forma de entretenimento que demande a minha atenção total. Por isso estou há tantas colunas sem escrever sobre alguma produção audiovisual, ultimamente só consigo ouvir música e podcasts, que é o que dá pra acompanhar quando estou lavando a louça, arrumando a casa e passeando com o cachorro.
E nem ao menos tenho me arriscado a ir atrás de discos obscuros e podcasts inexplorados, estou nadando de acordo com a maré das paradas que todo mundo está ouvindo. A propósito, essa deve ser a ducentésima coluna em que peço desculpas por indicar coisas já consagradas — o que se trata de uma impossibilidade numérica já que essa é a edição 56.
Mas enfim: ouçam o podcast “Alexandre”, sobre a atuação do ministro Alexandre de Moraes no Supremo e no TSE. Não apenas é fundamental para saber como ele foi importante para a manutenção da democracia no Brasil mas também como é apavorante notar o quanto essa mesma democracia dependeu tanto do desempenho de um só cara.
Inclusive dá até pra entender um pouco porque os bolsonaristas acham que o Judiciário tem poder demais. Bom, pensando bem até pouco tempo nós é que achávamos que os homens de toga estavam mandando muito nos destinos da nação.
E sim, como você talvez já tenha ouvido falar é impossível não ficar com vontade de descer até o chão com o funk instrumental que serve de vinheta para o podcast, algo bem curioso quando o retratado é um cara que parece incapaz de acertar um passinho porque tem o tipo físico de um segurança de boate. Mas nada contra quem não sabe dançar ou parece um leão-de-chácara, inclusive desculpa qualquer coisa e muito obrigado Xandão, tamo junto.