Conforme solicitado #55
Diogo Mainardi ao contrário
Muitos de vocês jovens talvez não se lembrem, mas durante os dois primeiros governos Lula, havia no debate público um senhor chamado Diogo Mainardi — o responsável, juntamente com Olavo de Carvalho, a dar uma cara festiva ao antipetismo e a mostrar à grande imprensa, e aos meios de comunicação em geral, o quão lucrativa poderia ser essa histeria política coletiva, ou melhor dizendo, esse pânico moral criado a partir de matrizes discursivas de anticomunismo, ressentimento de classe e udenismo requentado.
Mainardi começou como romancista e crítico literário da revista Veja, até que descobriu o filão antipetista e moldou uma persona de acordo. Não era à toa o fato de que sua coluna semanal ficava no final da revista, na parte de cultura, ainda que fosse, cada vez mais e mais obsessivamente, uma coluna política.
A explicação, me parece, era o fato de que suas colunas eram políticas no tema, mas na forma eram abordadas como tópicos de cultura. O que isso significa exatamente?
Significa que, ainda mais do que alguém à direita dele, como o próprio Olavo, Diogo inaugurou uma espécie de estetização do antipetismo, ao empregar o seu registro de crítico literário no terreno da política. E a estetização da política, sabemos, é o fascismo com um nome um pouco mais pomposo.
Um dos bordões criados por Mainardi era “Lula preso amanhã”, sua maior obsessão. Agora, em pleno segundo semestre de 2023, diante de uma caralhada de evidências materiais de que Jair Bolsonaro cometeu um tantão assim de crimes, todos eles desastrados e guiados por uma burrice quase parnasiana, o que nos resta é, à moda do próprio Mainardi, um sonoro e crocante “Bolsonaro preso amanhã”.
Nesta edição Gabriel fala, para variar um pouco, sobre o Rio de Janeiro; João dá sugestões para roteiros de filmes adultos, mas não é o que você está pensando e Arnaldo dá uns cascudos no roteirista do Brasil.
Além disso, nosso feijão com arroz bem feito: cartum e dicas da redação. Considere assinar alguns dos nossos planos pagos: R$15,00 o mensal; R$150,00 o anual e R$250,00 o anual plus.
Como diria vovó, de grão em grão a galinha enche o papo.
021, área de lazer
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Já escutei mais de uma vez que imprimo uma, digamos assim, identidade excessivamente carioca à newsletter. Ocorre que minha birra aí é com o advérbio: ou se é carioca ou não se é carioca, mas jamais se é “excessivamente” carioca.
O negócio é que renunciei a qualquer ilusão de cosmopolitismo quando entendi que, no Brasil, o que se passa por “cosmopolita”, na maior parte das vezes, é apenas “paulista”. E que o meu bairrismo não é assim tão diferente do bairrismo dos gringos.
Raymond Carver era de Seattle e esse troço tá na sua obra, em absolutamente qualquer lugar que você olhe. Martin Scorsese era uma criança de Little Italy, e isso basicamente moldou e condicionou sua sensibilidade artística e percepção de mundo. Woody Allen veio de um Brooklyn que nem sonhava com um processo de gentrificação e hipsterização.
Quando saiu de lá, criou um universo estético rico e complexo, mas que está geograficamente circunscrito a algumas poucas quadras do Upper East Side. Aquela porra é do tamanho do Catete, bicho.
Spike Lee nasceu em Atlanta, mas quando se mudou ainda criança para o Brooklyn, criou uma obra que se baseia em um enclave muito particular da sua vizinhança: Bed-Stuy.
Dostoiévski só falava de São Petersburgo, caraio. E por aí vai, você entendeu.
Em um passado mais ou menos longínquo, um amigo já falecido me chamava de “carioca não-praticante”. Porque na época eu reclamava muito do Rio: às vezes com razão, outras vezes injustamente.
O fato é que só comecei a abraçar o carioquismo extremo e jihadista quando percebi que não é difícil encontrar em São Paulo e no Sul do país um cacoete meio estranho, e totalmente sem-cerimônia, de caracterizar o carioca como um tipo malandro, preguiçoso, hiper sexualizado, violento e até propenso a crimes.
Uma lista pouco lisonjeira de predicados, que não seriam incomuns a um senhor de engenho no século 19, ao se referir a um certo tipo de mão-de-obra, se é que me faço entender.
Negócio é que à medida que fica mais caótica e disfuncional essa cidade, mais a gente ama as melhores coisas que ela produz: cultura, inovação, tradição, gente. Muito disso à revelia e ao mesmo tempo também graças a esse caos.
Naquela série documental da Netflix sobre a Fran Lebowitz, “Faz de Conta que Nova York é uma Cidade”, tem uma hora em que ela afirma que a Nova York da década de 1970 não era especialmente segura, barata ou convidativa. Mas, no entanto, todo mundo simplesmente queria e precisava estar lá. Como carioca, compreendo cada vírgula e cada sílaba desse argumento.
Bota com Heidegger
Arnaldo Branco
Análise técnica
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Aș pessoas dizem que é difícil ser roteirista no Brasil porque é complicado competir com a realidade. Pois acho justo o contrário, o nosso dia a dia na verdade é muito mal escrito, provavelmente por um redator muito preguiçoso. Eis o que aconteceria a descrição dos últimos acontecimentos fosse submetida a uma análise técnica:
Re: projetos
De: script doctor
Para: produção
Olá, estou mandando as notas sobre os projetos “Larissa Manoela”, “Hacker de Araraquara” e “O escândalo das jóias”. Os três têm sérios problemas de estrutura, mas vamos que vamos! Trabalho em equipe, galera.
Larissa Manoela
Entendo que a ideia era fazer mais uma dessas histórias tipo “pobre menina rica” mas os problemas da menina rica perdem a sua especificidade quando ela vive como uma menina pobre. Não ter dinheiro pra comprar um sapato certamente é um drama com o qual a maior parte do público pode se identificar, mas não era essa a ideia original, não é? A gente estava justamente querendo mais distanciamento do que empatia. Pensar em mudar para uma trama estio Cinderela. Uma parada mais “rags to riches”.
A cena do milho na praia é melodramática demais para ser comovente, eu cortaria. Ou botaria um item mais caro pra ficar mais convincente, sei lá, espetinho de camarão.
A sequência da entrevista da mãe para o programa sensacionalista também acho desnecessária, o espectador precisa odiar a vilã porque reprova suas ações e não porque ela explica em detalhes como é malvada em uma cena cheia de diálogo expositivo. Lembre-se, a regra número um do audiovisual é “não conte, mostre”.
Hacker de Araraquara
Primeiro: a gente precisa se importar com o destino do protagonista, e pra isso a gente precisa saber quem ele é, do que é feito e o que deseja. Mas o personagem central não tem motivações claras e as mudanças nas sua atitudes não têm o mínimo de coerência interna. Qual é o objetivo central dele? “Aparecer” não é uma resposta satisfatória.
O gênero precisa estar bem definido. Embora a narrativa tenha muitas cenas de intenção cômica, se é que eu entendi bem a intenção delas, o tom geral é de história de espionagem. Se a ideia era criar algo do tipo “Austin Powers” encontra “Dedé e o comando maluco” então sugiro limar as cenas de drama, como as do ex-presidente chorando. Aliás, esse vilão precisa ser mesmo tão covarde? Vamos trabalhar as nuances.
Se é um suspense, os pontos de virada precisam ser mais desenvolvidos e os mistérios mais difíceis de resolver. Na cena da invasão ao sistema do Conselho Nacional de Justiça as senhas são 123mudar e 12345, isso é fruto de uma escrita preguiçosa, favor elaborar mais.
E a trama não é não é bem um plot, é o equivalente a uma criança brincando com os seus bonecos e improvisando uma história na hora, fazendo barulho de tiros, socos e explosões com a boca.
O escândalo das jóias
Já esse projeto aqui eu reescreveria do zero. Se for uma paródia de filme de assalto como “Os eternos desconhecidos” a caricatura foi longe demais. Até quando a burrice dos personagens é exagerada para realçar o humor é preciso dar uma calibrada pro público não se sentir muito desrespeitado.
De uma forma geral os papéis também estão muito parecidos com o do projeto “Hacker de Araraquara”, é uma releitura?
Algumas sugestões de tramas pesadas para filmes realmente adultos
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
É noite e você, sozinho em casa, prepara alguma coisa na cozinha. Som de passos. Pensando que deve ser no corredor do prédio, você coloca alguma coisa pra tocar no celular. Volta a cortar os legumes tranquilamente por alguns minutos, até que numa pausa da música, você ouve novamente. Passos. Agora eles parecem vir de dentro do apartamento, às vezes mais perto, às vezes mais longe. Você pensa que deve ser bobagem e aumenta um pouco a música. Espera quase ansioso o final da canção. E novamente lá estão eles. Os passos. Cada vez mais perto. Mais perto. Mais perto. Você olha para a porta que separa a cozinha da sala. Mas nada acontece, ainda que você não se lembre de ter deixado aquela luz acesa. Os passos param. A próxima música entra. Uma das suas favoritas. E você esquece completamente qualquer preocupação. Exceto pela sensação de estar sendo observado. E quando você olha novamente pra porta, lá está. A sua namorada. Que já mora contigo tem quase um mês mas você tinha esquecido que está na casa, e agora está te observando enquanto você, só de cueca, canta a música “100 anos”, do Grupo Falamansa, usando uma cenoura como microfone. Você sente, no olhar dela, que alguém está questionando muita coisa sobre essa relação.
Como em toda grande narrativa de fantasia, um protagonista desavisado um dia abandona o conforto do mundo real para realizar uma missão num universo mágico e perigoso. Essa missão é pedir pra revisarem o valor de um imposto que foi cobrado errado e esse universo é o sistema da Prefeitura do Rio de Janeiro. Um lugar onde o tempo funciona de maneira diferente – podem te falar que algo vai ser resolvido em até 3 dias, que podem se tornar 5 dias úteis, que podem se tornar 20 dias, que podem nunca chegar. Um lugar onde criaturas mágicas se comunicam numa linguagem desconhecida pelo homem – o site fala que o seu requerimento foi autuado e a notificação de peticionamento agora recebeu uma juntada e você não sabe se as coisas estão andando ou seu formulário sofreu alguma forma de assédio. Uma Nárnia de burocracia onde, uma criatura irá sim se voluntariar para ser seu guia, mas não é um fauno e sim um despachante, pra quem você vai falar que precisa do documento em uma semana e ele vai responder “ah, isso aí não se resolve em menos de um mês, nem tendo contato lá dentro”.
Você tá cansado, namorada tá cansada, ninguém quer cozinhar, vocês decidem pedir Ifood. Ifood tem muita opção, mas 95% das opções são comida japonesa suspeita, hamburger artesanal superfaturado ou pizza cara. Mas tudo bem, vocês pedem hamburger. Previsão de entrega é uma hora, passou uma hora, status ainda é em preparo, você manda mensagem pro restaurante. O restaurante ignora mensagem, você manda mensagem pro Ifood, o Ifood te diz pra mandar mensagem pro restaurante. Você diz pro Ifood que mandou mensagem pro restaurante, mas o restaurante não respondeu, por isso está mandando mensagem pro Ifood. O Ifood não te responde. Já se passou uma hora e meia, você tenta cancelar pedido no restaurante, Ifood avisa que o restaurante não aceitou o cancelamento do pedido. Ou seja, o restaurante responde o Ifood mas não responde você. Você argumenta com o Ifood que já atrasou quarenta minutos além do tempo estimado e o restaurante não responde, o Ifood diz que você devia falar sobre isso com o restaurante. Você informa que tentou falar. O Ifood te sugere esperar. Você está esperando. Você tenta cancelar de novo. Não consegue cancelar. Duas horas depois do pedido, uma hora de atraso, o lanche chega. Você não reclama com entregador porque não é culpa do entregador, reclama com restaurante, restaurante não responde, reclama com Ifood, Ifood não responde. Lanche gelado. Sua namorada sugere colocar na Ayrfrier.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Fofoca? Aceito
Arnaldo Branco
Todo mundo está comentando o podcast “Alexandre”, que fala sobre os bastidores da atuação do ministro Alexandre de Moraes nos últimos anos, mas… — e aqui você achou que eu indicar um podcast obscuro que ninguém está mencionando mas se enganou redondamente: vou falar sobre outro que todo mundo está elogiando também. “Collor versus Collor” é sobre a guerra entre irmãos que culminou no impeachment de um deles, Fernando Collor de Melo, é um tremendo sucesso e você já deve ter botado na sua lista de espera. Se for isso mesmo, sugiro que você deixe ele furar a fila.
“Collor versus Collor” apresenta um excelente trabalho jornalístico, falando da queda do clã de Alagoas a partir de uma entrevista gravada com Pedro Collor para o livro “Passando a limpo — a trajetória de um farsante” (1993), conduzida pela Dora Kramer. E eu sei que quem conhece a Dora através sua paixão incondicional pelo Michel Temer estranha ler o nome dela na mesma frase que a expressão “excelente trabalho jornalístico” mas a verdade é que envelhecer mal é triste mas também é um direito.
O podcast é escrito e apresentado pela jornalista Évelin Argenta e além de explicar perfeitamente o contexto do início dos anos noventa mesmo pra quem nunca ouviu falar em República das Alagoas, Casa da Dinda e supositório de cocaína, traz um maravilhoso serviço de fofoca. Basicamente descobrimos que um governo caiu por causa de uma nora impopular e da implicância entre dois irmãos em eterna disputa pelo posto de queridinho da mamãe. Como dizem os jovens, serviu demais.
É divertido o quanto Hugh Grant parece estar se divertindo
João Luis Jr.
Ainda que meu filme favorito dele possivelmente seja “Um lugar chamado Notting Hill”, porque nada supera o carisma absurdo de Julia Roberts e a fascinante premissa retrô de uma atriz famosíssima que quer comprar um livro e realmente entra numa livraria para obter o objeto físico de maneira presencial, acredito que a primeira vez em que realmente me concentrei em alguma coisa envolvendo Hugh Grant foi quando assisti “O inglês que subiu a colina e desceu a montanha”, muito provavelmente em alguma reprise peculiarmente dublada do SBT.
E se naquela época o ator britânico era uma espécie de arquétipo do mocinho de comédia romântica, com um sotaque e um cabelinho impecáveis, uma carreira permeada por escândalos e filmes com variados graus de sucesso e insucesso, nos trouxe até o Hugh Grant que acompanhamos hoje, um cidadão que parece escolher seus trabalhos pensando muito mais no quanto ele vai se divertir atuando do que no prestígio gerado.
Isso motivou grandes participações em filmes como “Paddington 2”, “Caverna do Dragão” e “Glass Onion”, além do que muito provavelmente será um grande momento cinematográfico no papel de um oompa loompa em “Wonka”, o prequel extremamente desnecessário para “A Fantástica Fábrica de Chocolate” a ser estrelado por Timothe Chalamet”.
E nesse pacote de obras recentes em que Hugão parece estar se divertindo um bocado, um dos mais interessantes e menos comentados é “Magnatas do Crime”, um simpático filminho de menos de duas horas dirigido por Guy Ritchie e que também conta com Matthew McConaughey, Charlie Hunnam, Collin Farrell e Michelle Dockery, além de um Jeremy Strong que talvez tenha ali se divertido pela primeira vez na vida.
Mais uma daquelas histórias de gangster britânico que o ex-marido da Madonna tanto sabe fazer, é um filme que não oferece tantas reviravoltas mas compensa com bastante entretenimento, e muito disso se deve ao quanto Hugh Grant está se curtindo no papel de um detetive particular que quer, com a mesma intensidade, chantagear o personagem de McConaughey e transar com o personagem de Hunnam. Não vai mudar sua vida, não vai revolucionar o cinema, mas é sempre bom ver gente competente sendo feliz fazendo as coisas que sabe fazer.
Velhas discussões
Gabriel Trigueiro
Leio que a última moda agora é uma galera questionando a validade científica da psicanálise. Como toda polêmica na internet, essa é mais uma que lembra uma bolha de sabão: nada dentro, exceto ar. Os argumentos são ruins, a discussão é velha.
Na década de 1990, José Guilherme Merquior publicou na imprensa uma série de artigos sobre “a superstição psicanalítica”. Mas, ainda há mais tempo, em 1982, o psicólogo e intelectual público Bruno Bettelheim (que conheci por recomendação do Paulo Francis, e porque fazia uma ponta em “Zelig”, do Woody Allen) publicou um livrinho chamado “Freud and Man's Soul”, lançado aqui no Brasil como “Freud e a Alma Humana”.
No fim de sua vida, Bettelheim caiu em desgraça por conta de uma acusação de plágio, pois é, mas esse é outro assunto, para outro momento. Me deixa terminar, calma.
“Freud e a Alma Humana” é um livro interessante porque seu argumento é basicamente o de que os norte-americanos entenderam mal, entenderam muito errado, a psicanálise, tal como proposta por Freud.
Segundo Bettelheim, o x da questão foi o fato de que a “Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud'', editada por James Strachey e pela própria Anna Freud, distorceu argumentos centrais e criou erros interpretativos ao traduzir do alemão para o inglês a obra freudiana.
O maior problema, de muitos listados por Bettelheim, foi o fato de que a psicanálise nos EUA foi tomada de assalto pela Sociedade Médica norte-americana, e acabou sendo interpretada como uma especialização médica ou, como Freud uma vez declarou, “a mere housemaid of Psychiatry”.
O fato é que, no fim de sua vida, o próprio Freud sustentava que a psicanálise deveria ser tomada menos como um ramo da ciência e sim como um da filosofia. A distinção feita era entre “ciências naturais” x “ciências do espírito” (Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften), e a psicanálise pertencia ao segundo grupo.
É muito doido que estejamos em 2023, portanto 41 anos atrasados nessa discussão, e, ainda assim, estejamos falando dessa caralha.
Puta que me pariu, né, internet.