Conforme solicitado #54
Tira sua coerência do caminho que a minha ideia errada quer passar
Como Albert Einstein pode ter dito – já que ninguém pode provar que ele nunca disse – “a vida é um bagulho complexo pra caralho”. Existem coisas que você gosta mas não te fazem bem, coisas que você odeia mas precisa fazer, pessoas que você acha excelentes mas entende totalmente quem não suporta. Existem palavras que você diz pra si mesmo mas jamais diria pra outra pessoa, lances que você fez e deram errado mas você faria de novo, lugares em que você sabe que deveria estar mas a chance de você aparecer é praticamente zero.
Diante disso, da complexidade da vida e da experiência humana, qualquer papo mais sério sobre a famigerada “coerência” se torna uma mistura de simplificação com autoengano, já que não apenas é muito complicado ser realmente coerente nessa vida como sinceramente, quem por aí está sendo coerente o bastante pra vestir o bonezinho da Polícia da Coerência e sair fazendo blitz de coerência na entrada do Túnel Santa Bárbara? (“vamos precisar ver sua habilitação e conferir se o senhor está agindo de acordo com o que fala”).
Veja o nosso caso, por exemplo. Aqui na Conforme somos todos antipunitivistas, questionamos muito o papel da polícia, acreditamos que a violência não é a solução, ainda mais diante do tanto de absurdos que vem acontecendo sob o disfarce de “política de segurança”. Mas me fala quem não tá torcendo pro Bolsonaro ficar preso pelo resto da vida e, se possível, quando a PF pegar esse filho da puta, dar aquela porradinha com a cabeça dele na porta da viatura, que nem policial corrupto faz em filme americano? Porra, ia ser gostoso demais, que isso. Quem precisa de coerência quando pode ter um lance desses?
Mas mantendo nossa coerência, ao menos em termos de conteúdo, nessa semana temos Arnaldo usando o centenário do Millôr pra postar frases de efeito, Gabriel lançando a braba sobre Xuxa e Marlene Mattos e João discutindo a capacidade humana de se surpreender com coisas não-surpreendentes. Também temos as tradicionais dicas, o famoso cartum e aquele apelo singelo, carinhoso, no pé do ouvido, pra que você financie essa newsletter que é uma doce maravilha, mas não te faz pegar chuva e não atrasa coisa de umas quatro horas.
As novas grandes aventuras do Pikachu surpreso
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Acontece praticamente toda semana, dentro e fora da internet.
Pode ser com o quão parecidas duas pessoas da mesma família são (“semelhança entre mãe e filha choca internautas”), com uma informação que se imaginava de conhecimento geral mas não era (“usuários do Twitter ficam surpresos ao descobrir que Sherlock Holmes não existia de verdade”), com o desdobramento mais do que previsível de uma situação óbvia (“torcedores ficam chocados com o fato de que Neymar, homem cujo processo decisório é tão egocêntrico e imediatista que ele deixa a namorada grávida em casa para viver uma ejaculação precoce com uma influencer que vai imediatamente fazer um story sobre, tomou a decisão egocêntrica e imediatista de ir para o futebol saudita”).
Mas o fato é que todos os dias, em todos os lugares, temos alguém se mostrando absolutamente surpreso com algo que não é tão surpreendente assim.
O que por um lado é sim bastante bonito, claro. Se impressionar com a beleza de todo nascer do sol, sorrir com cada cachorrinho que busca bolinha na rua, conviver com uma pessoa durante anos e ainda assim conseguir se apaixonar por cada pequena coisa que ela sempre faz e você já é quase capaz de prever. Existe algo de muito poético e emocionante em não deixar de se surpreender com certas coisas, por mais repetitivas que elas sejam.
Mas por outro lado, em certos contextos, é preciso admitir que também é um pouco esquisito e até mesmo conveniente, essa coisa toda de se surpreender com situações óbvias. Ficar chocado porque a pessoa que você conheceu no carnaval quer continuar frequentando carnaval depois que vocês começam a namorar; parecer atônito porque o candidato que fez campanha com plataforma fascista foi eleito e se mostrou fascista; ficar profundamente decepcionado porque um homem que se apresentou como “Faraó do Bitcoin” e te prometeu lucros de 45% mensais não era exatamente honesto.
Porque ainda que existam situações que são realmente surpreendentes, onde o imprevisível aconteceu, o inesperado se manifestou, e o imponderável te atropelou com a lambreta impensável do destino, são inúmeras as situações na vida em que a surpresa é muito menos uma reação natural diante do extraordinário e muito mais uma forma de não assumir sua cota de responsabilidade por coisas que qualquer pessoa com um mínimo de atenção teria conseguido notar.
Foi realmente uma grande decepção aquele pessoa que já tinha vacilado contigo três vezes vacilar uma quarta, sendo que ela já poderia ter pedido música no Fantástico dos Vacilos? É realmente uma surpresa alguém não ter te perdoado quando você fez aquela coisa que a pessoa disse que jamais perdoaria? Foi realmente uma experiência chocante não ter dado certo um lance que todo mundo ao seu redor que realmente se importa contigo disse que não era uma boa tentar?
Porque ainda que a “falsa surpresa” seja sim um mecanismo de defesa até bem compreensível - pensa passar a vida toda analisando de maneira fria e realista todas as suas possibilidades e expectativas – é preciso reconhecer que depois de uma certa idade, um certo nível de experiência de vida e quando se trata de certas pessoas, a grande surpresa é a gente ainda conseguir se surpreender com alguma coisa. E aí não é exatamente uma surpresa boa.
De carona no centenário
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Se estivesse vivo Millôr Fernandes faria cem anos esta semana. Humorista, dramaturgo, artista plástico, poeta, tradutor — mas ainda mais reconhecido por ser um excelente frasista, talvez porque a galera achasse melhor encarar as coletâneas de tuítes avant la lettre em vez do resto da gigantesca obra do cara. Uma vez perdi a timidez e mandei umas frases que rabisquei pro Millôr — e ele me devolveu todas corrigidas. Pelo menos ele se deu ao trabalho, o que pode ser considerado uma forma de elogio.
Não são exatamente essas abaixo, mas eram na linha. Então no aniversário do Bernard Shaw do Méier quem ganha o presente de gosto duvidoso — frases de um tal de Arnaldo Branco — é você.
Se você perder no jogo da vida diga que estava priorizando outra competição
Se a Lady Macbeth fosse brasileira os jornais iam chamar de Musa do banho de sangue
‘Conte para gente como foi a sua experiência’ — site de compra parece terapia de grupo
Se tivesse Street Fighter de santo todo mundo ia escolher São Jorge
O brasileiro furaria a fila do seu próprio fuzilamento
Um bom indicador da ignorância é o tom professoral
O legal de não ter amigos é que você não precisa perder a piada
Se tem um lugar onde o conceito de raça ainda faz sucesso é em site pornô
"Você sempre com esse argumento" Enquanto ele estiver certo vou continuar usando
No twitter é como se os lixeiros sempre estivessem em greve
Depois de anos de vida real tiro de letra ser ignorado no whatsapp
Todos os atores que fazem propaganda de banco sorrindo merecem o Oscar
A carteirada é o four de ases do contrato social
Nas redes sociais é possível não querer mais olhar na cara de gente que você nunca viu na vida
Eu não aceito um não como pergunta
Meu analista me proibiu de comemorar o dia das mães
A tese de que o Brasil foi descoberto sem querer é um pedido velado de desculpas
Friendzone é como se chama o purgatório dos estupradores em potencial
"Fulano de tal me representa" Sem procuração nada feito
Queria amadurecer sem ser obrigado a ouvir jazz
Isso é tudo, pessoal. Um brinde ao Millôr, e que Ele me desculpe por pegar carona na Sua efeméride, amém.
Passando pano pra Marlene
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Como muita gente por aí, assisti recentemente à série documental “Xuxa, O Documentário” (título não é o forte da turma), na Globoplay — direção artística do Pedro Bial, direção da Cassia Dian e da Monica Almeida e roteiro da Camila Appel.
E daí que eu gostei bem, mas aqui não quero falar sobre a série em si, que, como já disse, é bem boa (excelentes imagens de arquivo, edição precisa e a lembrança oportuna do tamanho imenso que a Xuxa já teve, como fenômeno pop global), mas apenas de uma coisa bem específica: a conversa que ocorre no quarto episódio, com sua antiga empresária Marlene Mattos.
É uma conversa estranha, constrangedora, mas, ao mesmo tempo, muito reveladora. Como minha mulher observou bem na mosca, a interação das duas, que estavam há 19 sem se falar, é aquele tipo de interação que de cara já dá a bandeira de que são duas pessoas que evidentemente se conhecem de trás pra frente e de frente pra trás.
A intimidade que ainda persiste entre ambas é impressionante. Aquele clichê é verdadeiro, a impressão que se tem é que não foram 19 anos, mas apenas 19 minutos que as duas ficaram sem se falar.
Hoje em dia um monte de jargões sociológicos e psicanalíticos se popularizaram, sobretudo através das redes sociais. Então um negócio que é mais ou menos frequente no discurso público é a banalização e o esvaziamento de conceitos originalmente precisos, que se tornaram basicamente clavas para bater na cabeça de desavisados.
Então, acredite, evito, ou pelo menos tento ter algum cuidado, antes de usar uma palavra como “abusivo”, ou uma expressão como “relacionamento tóxico”, mas é difícil não pensar nessas definições quando se observa a ascendência e o domínio que a Marlene tinha, e, em alguma medida, ainda parece ter sobre a Xuxa. Bom, pelo menos na superfície.
Assim, manter a Xuxa em prisão domiciliar foi maneiro? Evidente que não. Não permitir paquitas negras foi legal? Sem comentários. Mas aí cabem algumas variáveis, algum contexto. A mesma galera que, sempre que é conveniente, não pensa duas vezes antes de sacar a muletinha retórica do “fulano era um homem do seu tempo”, é a turma que não hesita em jogar Marlene embaixo do ônibus.
Ainda que Xuxa certamente tenha sofrido inúmeras violências psicológicas e abusos ao longo de sua relação profissional com Marlene, o engraçado é que durante o documentário não se observa qualquer crítica ao topo da cadeia de comando da Globo durante aquele momento específico.
O todo-poderoso Boni é tratado quase como uma figura paterna. Maurício Sherman, de quem Marlene era mera assistente, é lido como um fofo, um querido. Já à Marlene (mulher, lésbica e nordestina — dados convenientemente ignorados no backstory do documentário) coube o papel de autoritária, violenta e megera. Em resumo, lhe coube o papel de uma angry black woman.
Xuxa é uma personagem complexa, é claro. É uma artista de talento evidente e com uma trajetória singular. O estranho é que, a essa altura do campeonato, ela negue a mesma complexidade (e, no limite, humanidade) à Marlene e seja incapaz de reconhecer que as violências que sofreu profissionalmente tinham uma cara e um caráter institucional.
Após o documentário, saímos sem qualquer crítica formulada às Organizações Globo e tampouco à cadeia de comando da emissora: composta por homens brancos de classe alta, que passam incólumes e intocados, todos eles, ao longo das sei lá quantas horas da série.
Varrem para baixo do tapete o caráter institucional das violências e abusos sofridos pela Xuxa e personalizam um negócio complexo, a partir do uso covarde de um bode expiatório conveniente, um alvo fácil.
Na real o que temos é um white woman tears de uma mulher infantilizada a serviço de uma lavagem de reputação da firma, às custas do assassinato da reputação de uma mulher negra e nordestina, que durante os anos 1980 e 1990 só faltou fazer chover na caralha da televisão brasileira.
Marlene Mattos foi nossa Malcolm Mclaren, nossa Vivienne Westwood, essa é que é a verdade.
Argumentar isso não equivale, é claro, a ignorar seus erros — alguns deles muito sérios. Significa apenas dar a escala e a proporção devida às coisas que ocorreram e aos agentes envolvidos.
Infelizmente no meio do caminho tinha um white woman tears, tinha um white woman tears no meio do caminho.
Lei Larissa Manoela
Arnaldo Branco
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Kathryn Hahn é entretenimento garantido ou seu dinheiro de volta
João Luis Jr
Existem certos atores e atrizes que, mesmo sendo raramente protagonistas, são sempre garantia de algo especial num filme ou série. Gente como Judy Greer, Stephen Root, JK Simmons, Allison Janney, Stanley Tucci e “Character Actress Margo Martindale”, que talvez você não consiga reconhecer pelo nome, mas que se seu te apresentar uma foto você vai ficar “ahhhhh, conheço sim, manda bem, manda bem”.
Uma dessas pessoas é, sem dúvidas, Kathryn Hahn. Ainda que atualmente bem mais famosa por conta do seu papel de destaque em “Wandavision”, ela já chamava atenção desde a primeira década dos anos 2000, se destacando em pequenos momentos como a cena mais perturbadora do filme “Stepbrothers”, que se transformariam em papéis ainda mais marcantes como o de Jennifer Barkley em “Parks and Rec” e Raquel Fein em “Transparent”.
E ainda que já tenha sido protagonista em séries de curta duração, como “Free Agents” e “Mrs Fletcher”, é sempre impressionante ver o talento que ela tem para carregar uma cena, seja em comédias absurdas ou em dramas pesados, como “Mais uma Chance”, ao lado de Paul Giamatti.
Porque é isso que ela faz em “As Pequenas Coisas da Vida”, minissérie em 8 capítulos disponível no Star+, onde Kathryn Hahn interpreta Clare, uma personagem apresentada em diversos momentos da sua vida, seja no passado lidando com a faculdade, o uso de drogas e a morte de sua mãe, seja no presente, envolvida com problemas no casamento e a criação da filha adolescente.
E é o talento da atriz, ancorada por ótimos coadjuvantes, que faz com que uma protagonista que poderia soar bastante antipática e uma trama com riscos de cair no melodrama consigam funcionar de uma maneira que explora os defeitos da personagem mas ainda assim gera empatia, te levando a sorrir com cada vitória e sofrer um pouco com cada problema – e sinceramente, não falta problema, sério.
Então se você é fã de Kathryn Hahn ou apenas quer sofrer com dramas familiares mas não tem a energia para encarar 6 temporadas de “This is Us”, “As Pequenas Coisas da Vida” é sim uma excelente recomendação, você vai provavelmente chorar ao menos uma vez.
Yasuke, o samurai negro
Gabriel Trigueiro
A dica de hoje é a trilha do anime, produção original da Netflix, “Yasuke”, sobre um samurai negro no Japão medieval. Ela é assinada por Flying Lotus, um dos músicos mais talentosos e criativos desta geração. Sujeito que tive a sorte de assistir ao vivo no Governors Ball de 2015, em Nova York (ui).
A história do anime é baseada em um evento real, mas é uma versão romantizada e tal: a ambientação é o Japão do shogunato, mas tem robôs gigantes, monstros, é uma festa. “Yasuke”, o anime, é criação de LeSean Thomas, que, como o próprio Flying Lotus, começou sua carreira no Adult Swim, celeiro dos brabos.
Lotus representa aquela interseção entre hip hop, música eletrônica e jazz tão comum a músicos negros desta geração nos EUA. A sonoridade do álbum mistura percussão de origem africana com percussão japonesa, timbres futuristas de sintetizadores, elementos de hip hop, bateriazinha de trap, etc. “Black Gold” é o tema do personagem principal e conta com a participação do, igualmente genial e fã de anime e cultura japonesa, Thundercat.
O disco tem influências de gente como Vangelis e John Carpenter, claro, mas as soluções estéticas encontradas por Lotus são sempre únicas e criativas. Não há ecos tampouco de outras trilhas de animes como Afro Samurai (assinada pelo RZA) e Samurai Champloo (criada por Shinichirō Watanabe). Quando você dá play nesse troço, você é transportado para o universo particular e único de Lotus e Thomas.
A trilha é à altura do anime, e afirmar isso não é dizer pouco. Ambos são universos imersivos, complexos e divertidos pra chuchu, criados por duas das maiores inteligências negras do nosso tempo.
Escute um, assista o outro.
Sente a marola
Arnaldo Branco
Um disco que não é tão recente mas que tá rodando tanto por aqui que me senti meio que obrigado a indicar é “Músicas para fumar balão” de Big Bllakk e Derxan, dois MCs da cena drill que mostraram entrosamento desde a sua participação no Brasil Grime Show, outra parada que merece uma resenha: é um canal que revela mais talento que as divisões de base do Barcelona.
Aliás, devemos a carreira de Bllakk, além do seu enorme talento, ao exército brasileiro, que foi mais rápido para expulsar o músico de seus quadros (por causa de suas letras contundentes) do que no caso de um certo capitão que agora está metido em altas confusões.
Ele e Derxan são grandes fãs de Jorge Ben (a capa do último lançamento de Bllakk é simplesmente essa), o que fica evidente nas milhares de citações nas vinhetas e nas letras. Aliás, nem precisava ter destacado isso aqui: tem uma música (ótima) chamada “Interlúdio Jorge Ben” que menciona alguns dos personagens mais famosos do Jorgebenverso: “Os alquimistas estão chegando”, “Menina mulher da pele preta”, “O homem da gravata florida”, “Ive Brussel”, “Bebete vambora” e “O telefone tocou novamente”. A produção é de Pedro Apoema, craque.
‘Músicas…” é completamente entranhado de Rio de Janeiro, com muita referência à praia, futebol, maconha e Lulu Santos (sério, é o nome de uma das músicas). Um disco pra marolar muito.