Desconfie dos seus sonhos
A sexta-feira tá aí e achamos que seria uma boa trazer um texto de autoajuda na abertura da newsletter. Geralmente esse tipo de conteúdo chega na segunda pra te dar força para a semana, mas te pega justamente quando você está reenergizado pelo recesso, e não esbagaçado pela sequência assassina de cinco dias úteis. A gente tá querendo suprir essa demanda inexplorada.
Então nosso conselho motivacional é: não acredite nos seus sonhos. A gente entende que sua relação com eles é longa e por isso baseada na solidez da familiaridade, mas é justamente aí que mora o perigo. Por exemplo: seu subconsciente, que sabe mais sobre você do que você mesmo, também fabrica sonhos durante sua inconsciência — e eles são estranhos, hostis e revelam desejos reprimidos que era melhor deixar quieto. Ou seja, seu cérebro não é uma fábrica de sonhos confiável, você pode passar a vida inteira perseguindo uma aspiração errada só porque foi você quem criou.
Permita-se desconfiar dos seus sonhos, desapegar deles, abandona-los. Mais ou menos como a gente fez com a nossa fantasia de viver de newsletter, já que nosso número de assinantes é lisonjeiro porém insuficiente para bater a meta. Portanto considere assinar a Conforme solicitado (R$ 15 mensal, R$ 150 anual ou R$ 250 anual plus) para que esses três escribas alquebrados cheguem lá, porém sem alimentar nenhuma expectativa.
Nesse número Arnaldo volta ao assunto “burrice da direita” (porque ele é inesgotável). João fala sobre como Oppenheimer é mais contra homens que Barbie e Gabriel escreve sobre Sinéad O’Connor. Além disso, tem cartum, dicas e uma leve esperança de que a psicologia reversa nos faça alcançar nosso desejo de emancipação financeira enquanto a gente finge não se importar.
Sobre a mensagem anti-homem do filme Oppenheimer
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Muito tem sido discutido sobre “Oppenheimer”, o mais recente filme do diretor - e homem que possivelmente fala da sua cor preferida de legenda já no primeiro encontro, “porque legenda branca não é cinema de verdade, sabe?” – Christopher Nolan.
Alguns têm questionado a veracidade de certos momentos históricos – houve realmente uma conspiração contra Oppenheimer? Era mesmo próxima sua relação com Einstein? Foi realmente o físico americano o responsável por cunhar a frase “chegar em mulher solteira pra mim é feito fazer gol em time sem goleiro”?
Outros têm debatido qual o significado real do filme, se Oppenheimer é sobre a petulância do homem ao brincar de Deus, sobre como o desenvolvimento científico sempre será manipulado pelos interesses dos poderosos; ou mesmo se a grande lição desse filme de três horas de duração é que a verdadeira bomba atômica são as casadas que comemos pelo caminho.
Mas o que curiosamente muito pouca gente tem debatido é a forte mensagem anti-homem de “Oppenheimer”, um filme que, muito mais do que o tão criticado “Barbie”, apresenta o gênero masculino sob uma luz profundamente negativa, com Julius Robert Oppenheimer realizando ações que deixariam chocados e confusos absolutamente qualquer um dos Kens dentro de suas mojo dojos casas houses.
Primeiro pela caracterização de cada um dos personagens. Afinal, se Ken pode usar sua própria ignorância como álibi para seus mais diversos erros ao abraçar o patriarcado como forma de encontrar uma identidade, Julius Robert Oppenheimer tinha plena consciência de todas as ações durante sua trajetória, que começa movida por convicções políticas mas em diversos momentos parece envolver também ego e sede de poder.
Depois porque, se ambos os personagens se portavam de maneira negligente e egoísta com suas parceiras, ainda que dependessem delas na maior parte do tempo, Ken ao menos parecia reconhecer a importância de Barbie e ser capaz de um mínimo de respeito pelos outros Kens, enquanto Oppenheimer não apenas ignorava frequentemente as opiniões de Kitty como praticamente não tinha amigos e sim apenas veículos que ele usava para conhecer novas esposas, seu principal interesse além da física.
Isso sem contar, é claro, o fato de que no terceiro ato do filme “Barbie”, Ken reconhece os danos causados por suas ações e pede desculpas, coisa que Oppenheimer jamais faz, seja para sua esposa, seus colegas de profissão ou mesmo para o ex-amigo que cuidou de seu filho e cujo exílio ele acabou causando.
Ah, e nenhum Ken criou uma arma de destruição em massa que matou mais de 100 mil pessoas no Japão. Tem isso também.
Ou seja, se Barbie foi criticada por apresentar os homens como infantis, burros, autocentrados e dispostos a qualquer coisa para manter o próprio protagonismo na sociedade, a verdade é que Oppenheimer não apenas reforça cada um desses pontos como ainda adiciona o fato de que, se você ficar deixando as coisas na nossa mão, a gente provavelmente vai avacalhar nossos relacionamentos, enriquecer plutônio e produzir bombas capazes de matar cada vez mais gente.
Sério, se continuarem lançando filme assim vai ter gente batendo em homem na rua, galera.
Crapitalism
Arnaldo Branco
Santa Sinéad
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Se você é mais ou menos velho(a) como eu (e bem-vindo(a) aqui ao conceito de “mais ou menos velho(a)”) a imagem que você tem da Sinéad O’Connor, falecida agora em 26 de julho de 2023, provavelmente deve ser 1) ela rasgando uma foto imensa do Papa João Paulo Segundo, em protesto contra a epidemia de escândalos sexuais envolvendo a Igreja Católica, durante performance no Saturday Night Live ou 2) o clipe minimalista em que ela canta Nothing Compares 2 U, aquele cover lindão do Prince, você sabe.
Meu argumento aqui é o de que a artista irlandesa foi muito mais do que isso e que a sociedade no mínimo lhe deve desculpas, porque sempre a tratou com a misoginia mais arrombada e abjeta possível. Vamos às evidências.
No episódio da semana seguinte ao que ela rasgou a foto do Papa, o SNL deu aquele monólogo de abertura para o Joe Pesci — que apareceu com a foto do João Paulo II colada/remendada e ainda meteu que se o programa fosse dele, ele teria dado umas porradas na Sinéad O’Connor. No que foi prontamente ovacionado pela audiência, diga-se de passagem.
Sinéad O’Connor foi amplamente criticada quando, depois de ganhar nada menos do que quatro indicações, sinalizou publicamente que boicotaria o Grammy. Também recebeu críticas e, mais uma vez, ameaças físicas (dessa vez de ninguém menos do que Frank Sinatra), quando recusou polidamente que fosse tocado o hino nacional antes de um show seu em Nova Jersey.
Como ela disse na época: “Anthems just have petrifyingly contagious associations with squareness unless they’re being played by Jimi Hendrix”. Além da ameaça de Sinatra, MC Hammer (pois é) foi abertamente xenófobo e cuzão e se ofereceu a ela para comprar uma passagem só de ida para a Irlanda.
Sobre a ameaça de Sinatra, Sinéad declarou quase asceta: “I love Frank Sinatra. Who doesn’t love Frank Sinatra? What’s not to love?... Even to have been threatened with physical violence by Frank Sinatra is an honor.”
Aparentemente o maior crime de Sinéad O’Connor era o de não ter aceitado e abraçado incondicionalmente o papel de uma estrela pop passiva, de rosto angelical.
A verdade é a de que ela conduziu sua vida em torno de uma busca espiritual incessante e absoluta. Em um desses plot twists malucos e irônicos da vida, chegou a ser ordenada padre, por um grupo católico independente, sem ligações com a Igreja de Roma.
Foi Bernard Shaw, no prefácio da sua peça sobre Joana D’Arc, quem argumentou que quanto mais cristão você fosse, maior seria a sua disposição anticlerical.
Nesse sentido, nada mais cristão do que rasgar a foto do Papa, em rede nacional. De todo modo, em 2018 ela se converteu ao Islã e mudou seu nome para Shuhada’ Sadaqat — ainda que tivesse continuado a assinar Sinéad O’Connor em discos e apresentações.
Sinéad foi uma artista brilhante, original e versátil. Fosse regravando Cole Porter, Nirvana, Prince, alguma canção folclórica irlandesa, um reggae ou um dub. Além disso, foi uma importante aliada e uma early adopter do movimento hip hop — em uma época em que isso não rendia qualquer tipo de capital social, pelo contrário.
Em 1988 não pensou duas vezes antes de chamar a MC Lyte para remixar seu single “I Want Your Hands (On Me)”, atitude que abriria inúmeras portas para mulheres negras no rap e na indústria musical mais mainstream.
Sinéad O’Connor também se apresentou no 31º Grammy, o de 1989, com a logo do Public Enemy estampada na própria cabeça, quando a comunidade do hip hop boicotou o Grammy daquele ano, porque, bem, se hoje ele ainda é um evento ridiculamente racista, agora imagina aquele troço no final da década de 1980.
Sinéad O’Connor tem um tamanho e relevância na cultura popular e na história da música que lhe é raramente reconhecido. Puta que o pariu, né, já passou da hora de uma revisão histórica.
Governados por idiotas
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
A última ideia da direita pra tentar motivar seu eleitorado — que está desmobilizado desde o fracasso do golpe — veio de Romeu Zema, um projeto de fascista que não tem muito physique du rôle já que parece o Barbosa da TV Pirata. O plano? Uma aliança sul-sudeste contra o nordeste, em busca de mais protagonismo político.
Sim, o cara acha que falta protagonismo para duas regiões já extremamente aduladas com verbas federais e que o melhor jeito para chamar a atenção pra sua campanha é convocando um boicote ao nordeste, que não só foi determinante no resultado das últimas eleições, mas que também tem representantes orgulhosos que vivem e trabalham no eixo sul-sudeste. Além de não saber como funciona um vírus, Zema não entende o conceito de corrente migratória.
É claro que pegou mal e todo mundo que aderiu na primeira hora já voltou atrás — um pouco tarde, já que ficou bem claro que são xenófobos com péssima leitura do jogo político. Mais uma iniciativa frustrada da maior força motriz do bolsonarismo, o idiota motivado.
Semana passada falei da burrice da direita, que foi instrumental na hora juntar uma horda de tapado que entrou na aventura bolsonarista por identificação, mas que foi uma tremenda desvantagem quando chegou o momento de tentar se perpetuar no poder — o resultado foi uma sucessão de estratégias de jerico que está levando vários representantes do governo Bolsonaro para a cadeia.
Agora vem a notícia dos ajudantes de ordens a serviço de Bolsonaro que deletaram 17.000 emails comprometedores de suas caixas de entrada, mas esqueceram de repetir a operação na pasta lixeira. Em matéria de estupidez a direita é um exemplo de superação.
O problema é que sempre que a gente descobre mais coisas sobre o despreparo dos caras lembro a cena em “Trainspotting” em que o Ewan McGregor fala que não odeia os ingleses porque são só uns caras desprezíveis — e que ele e seus conterrâneos escoceses são bem piores, já que conseguiram ser colonizados por caras desprezíveis.
É a mesma sensação com os bolsonaristas: como é que a gente foi governado por esses caras?
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Não vamos fingir que faz tanto tempo assim
João Luis Jr.
Um comediante americano branco fez certa vez uma piada sobre como viajar no tempo também envolve um certo grau de privilégio racial, já que pra uma pessoa preta qualquer período anterior ali a 1980 já começaria a ficar um tanto quanto complicado, já que os níveis de racismo ficariam exponencialmente maiores.
Ainda que seja, num certo grau, um exagero – racismo não existe desde sempre, sendo uma construção histórica realizada através de diversos fatores – ela toca na questão do quanto, por mais que tanta gente queira fazer situações como racismo institucionalizado e escravidão parecerem episódios de um passado distante, eles são sim eventos recentes e ainda presentes em certas partes do mundo e setores da nossa sociedade.
E “Incognegro”, a HQ de 2008 escrita por Mat Johson, com arte de Warren Pleece, que mostra um jornalista preto de pele clara, que consegue se passar por uma pessoa branca, cobrindo os linchamentos de pessoas pretas que ainda aconteciam por volta de 1930 nos Estados Unidos, foi criada exatamente com a intenção de nos lembrar não apenas o quão recentemente ainda era comum esse tipo de barbárie como o fato de que vivemos num mundo em que bastante gente gostaria que isso voltasse a ser frequente.
Um retrato chocante de uma época não tão distante assim – muitos de nossos avós estavam vivos numa época em que, na “maior democracia do mundo”, pretos eram espancados e enforcados em praça pública – “Incognegro” é uma dessas HQs que conseguem ser sim uma voadora no peito sem deixar, em momento algum, de ser uma excelente leitura e uma narrativa profundamente instigante. Ou seja, revoltante para um caralho, mas vale demais a pena.
MPGrunge
Arnaldo Branco
Pensei em indicar o maravilhoso e hypado “Xande canta Caetano” mas seria jogar fora o espaço dessa resenha já que provavelmente nesse momento tem um amigo te obrigando a ouvir à força. Pode confiar nele e pedir pro cara te desamarrar. Então vamos com outro lançamento — não sei se a palavra se aplica porque já se foram uns meses mas vocês vão me dar uma licença poética.
Já falei desse disco aqui, porém de maneira en passant, o que é um crime. Então aproveitando que o Mateus Fazeno (assim mesmo, no gerúndio com d mudo) Rock se apresenta hoje no Circo Voador sugiro encarecidamente que você ouça “Jesus ñ voltará” a tempo de pegar a apresentação do cara — supondo que você lê a Conforme na sexta feira, assim que ela brota na caixa de entrada; mora ou está de passagem pelo Rio de Janeiro e é um cara influenciável a ponto de se orientar por uma dica de newsletter.
Cria de Fortaleza, Mateus faz o que chama de rock de favela, que ele já definiu em uma entrevista como uma mistura de Djavan e Kurt Cobain — o que está correto porém insuficiente, tem muito mais na obra dele desde seu disco de estreia “Rolê nas Ruínas”. Eu sei que é o cúmulo da crítica preguiçosa (e aqui lembro que essa é uma seção de dicas, quer explicação vai ler a Pitchfork), mas com o Mateus só ouvindo.
Meu consolo é que você não vai se arrepender:
“I'm a real beach boy / Come ride my wave”
Gabriel Trigueiro
Não me lembro agora se Vince Staples era do bonde do Odd Future, ou se era apenas o famoso agregado. O fato é que, tanto quanto Tyler e Frank Ocean, o bicho sempre foi absolutamente brabo e, desculpa o termo, FORA DA CASINHA.
Nesse disco homônimo de 2021, a produção absolutamente chique e minimalista é assinada pelo Kenny Beats. “Vince Staples” tem uma sonoridade lo-fi e é quase como se a ideia fosse a de apresentar um disco cru, no qual a atenção recaísse não em um feat espalhafatoso, ou em um beat malucão, mas apenas na capacidade de contar histórias tristes e engraçadas do sujeito.
É maravilhoso que o mesmo artista que um dia gravou “Big Fish”, um disco que tem mais em comum com a cena House de Chicago do que com o rap stricto sensu, tenha lançado esse disco em 2021. Aliás, o ano não é irrelevante. Lembro que foi um disco que me acompanhou muito durante a pandemia e que me ajudou a ficar são.
Em um momento lá de “Are You With That?, Vince Staples canta: “I'm a real beach boy / Come ride my wave” — uma piada com o fato de ser de Long Beach e, ao mesmo tempo, de se declarar um Beach Boy, uma banda toda pautada por uma utopia branca, idílica e reacionária da Califórnia. Perdoa, mas cismei com esses filhos da puta.
Uma vez um gringo da NME definiu Staples como “a mix of wit, imaginative storytelling, and goofy deadpan commentator”. Sinceramente? Eu não poderia dizer melhor. Vai que vai, meu arquiteto.