A violência dos idiotas
Tem aquela cena lá famosa de Django Livre, em que há uma tentativa frustrada de ataque de membros da KKK, na qual os caras discutem ao longo de cinco minutos porque suas máscaras foram mal costuradas — os buracos para os olhos são tortos, não permitem que eles enxerguem direito e a máscara é toda mal ajambrada, atrapalha a respiração etc.
No final, os sujeitos ficam completamente cegos, cavalgando em círculos. O que era para soar como uma chegada imponente e dramática, vira um ato de bufonaria, à moda de uns Irmãos Marx, de uns Três Patetas. O fascismo antes de tudo é burro.
Se Francis Ford Coppola deu um tratamento operístico e estetizado aos seus mafiosos, Scorsese filmou os seus como gente bruta e grosseirona, uma abordagem mais próxima à dos filmes de gângster da década de 1930 da Warner (James Cagney e companhia).
Além disso, há os irmãos Coen — que decidiram mesmo antes de Fargo, lá em Blood Simple isso já estava claro, filmar a violência da idiotia e da ignorância. Comédia de erros com gente burra. Simples assim.
Leio em um portal de notícias que a frase “publique-se, intime-se e faz o L. Assinado: Alexandre de Moraes" no mandado falso de prisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral foi pilha da deputada Carla Zambelli (PL-SP), segundo o tal do Walter Delgatti, o hacker da Vaza Jato.
E o que falar dos bolsonaristas que planejaram um golpe de estado mas não apagaram as evidências na nuvem do celu? A sorte da nossa democracia é a de que nossos fascistas são, antes de tudo, fundamentalmente burros.
Agora voltando ao papo de sempre, se você gosta do que lê na CS, considere contribuir com algum plano pago. Já estamos há um ano no ar, jogador. Essa onda de produzir conteúdo de alto nível (sem falsa modéstia por aqui, eu hein), com periodicidade semanal e de graça, é bem difícil, não vou te enganar não. Tamo tirando leite de pedra.
Nosso plano mensal custa apenas R$15,00; o anual R$150,00 e o anual plus R$250. Na edição desta semana, Gabriel fala sobre a filosofia moral do Grupo Bokaloka; João lista novas ideias para filmes baseados em brinquedos e Arnaldo sobre o tema adiantado nesse abre da newsletter: a burrice da extrema direita.
Além disso, temos o cartum do Arnie e as dicas da redação. Como diria Jorge Vercillo, “Pode me abraçar sem medo/ Pode encostar tua mão na minha”.
No qual discorro acerca da filosofia moral do grupo Bokaloka, bem como a respeito do papel da arte na interpretação do Mal na natureza humana
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Em memória de Renatinho Bokaloka (02/04/1974 - 05/01/2023)
Em artigo publicado no ano passado na The Point Magazine, “Art Is for Seeing Evil”, Agnes Callard argumentou de modo convincente que o papel da arte, “de poemas épicos a tragédias gregas, de comédias de Shakespeare a contos e filmes” é o de enxergar o mal.
Não em termos moralistas, nada disso, mas como uma das muitas facetas e texturas da experiência humana. Em um mundo tão obcecado por positividade tóxica e sinalização de virtude, a arte é a única chave que nos permite acessar uma determinada paleta e variedade de sentimentos restritos à nossa consciência mais íntima.
Como Callard pontua:
I am using the word “evil” to encompass the whole range of negative human experience, from being wronged, to doing wrong, to sheer bad luck. “Evil” in this sense includes: hunger, fear, injury, pain, anxiety, injustice, loss, catastrophe, misunderstanding, failure, betrayal, cruelty, boredom, frustration, loneliness, despair, downfall, annihilation. This list of evils is also a list of the essential ingredients of narrative fiction.
O que me leva evidentemente ao grupo de pagode Bokaloka, cuja obra toda foi construída a partir do tema “adultério”. Você pode observar que, é claro, falar de adultério em letra de pagode é quase uma convenção de gênero. Mas o que sucede aqui é que o grupo Bokaloka elevou o nível do jogo. Não se trata apenas de uma apologia ao adultério, mas sim do estado da arte desse troço.
Por exemplo, em “Que situação” o eu-lírico esbarra com a amante em um pagode, mas acontece que a moça está com o namorado. Daí o que o cabra faz? Sugere que a amante INVENTE UMA CONFUSÃO com o namorado, brigue com ele, para que o corno saia do pagode, deixando a namorada disponível para a investida no sigilinho do nosso Casanova pagodeiro.
Se não vejamos: “Porque vocês estavam logo ali?/ Não vê que de vocês quero fugir / Podia ao menos ter me avisado / Que ia curtir a noite com seu namorado / Vai dando jeito pra gente ficar / O tempo que nos resta nessa festa / Bate nele, xinga ele / Manda ele embora / Eu sei que eu sou desejo seu / Você também é desejo meu / Larga ele agora…”.
Já em “Melhor Amiga da Minha Namorada”, o sujeito lamenta: “Ah... como essa vida é engraçada / Estou vivendo um conto de fadas / Tudo por culpa de um prazer / Ah... eu estou errado e você está errada / Porque eu amo a minha namorada / Mas eu não posso te perder /Eu não posso e não quero”.
Ou em “Apaixonado Pela Sua Amiga”, em que o camarada dispara “Vou te mandar a real / Estou apaixonado pela sua amiga / Vê se não fica mal / Mas bota ela na minha fita”. Apenas.
Foi Nelson Rodrigues quem disse uma vez que a beleza do ser humano é aspirar à santidade, mesmo sabendo-se um pecador. Nossa imaginação funciona pelo contraste, por pares de opostos.
Nelson escrevia aquelas peças e crônicas, enfileiradas de toda a sorte de depravações morais, não porque as endossava, mas porque as entendia. Ao menos os seus aspectos humanos, calma lá. Nesse sentido, o Grupo Bokaloka fez um negócio semelhante à obra do Nelson.
Só é possível compreender a natureza humana, ao menos de perto e com atenção, se buscamos compreender os vícios, e não somente as virtudes.
Quer moleza, tuiteiro? Senta no pudim.
Quatro novas ideias para franquias bilionárias baseadas em brinquedos
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
1.
Um filme em que dois lango-langos saem da Lango-Langolândia, chegam ao mundo real e descobrem que os lango-langos só se comunicam através de socos porque foram criados num período em que os meninos eram educados a interagir através da violência como rito de amadurecimento. A grande cena final é um lango-lango esticando o punho, porém ao invés de dar um soco, ele puxa o outro para mais perto e eles se beijam. Direção de Luca Guadagnino, os dois lango-langos principais seriam interpretados por Tom Holland e Timothée Chalamet.
2.
Durante uma de suas intermináveis batalhas contra a Organização Cobra, os G.I. Joe (pt-br “Comandos em Ação”) veem Destro avançando por um portal desconhecido. Ao perseguir o vilão, os Joes se veem lançados no mundo real, onde, após acompanhar brevemente os noticiários, descobrem que não estão presos em uma batalha totalmente justificada entre o bem e o mal, mas sim que são representantes da guerra ideológica de uma potência mundial contra o resto do mundo.
Confrontados com a realidade de que o exército americano não é uma força de paz global mas sim uma complexa máquina utilizada para desestabilizar outros países e atingir interesses econômicos, nossos protagonistas não se incomodam e ficam bem de boa. Porém, quando um deles descobre que uma criança usa o próprio xixi pra fazer com que o G.I. Joe que muda de cor mude de cor, todos eles decidem perseguir a criança atirando.
3.
Após perceber uma grande perturbação na magia de Etérnia, He-Man é orientado pela Feiticeira para ir, na companhia de Teela, Gato Guerreiro e outros aliados, até o mundo real, pois apenas lá ele poderá encontrar a causa deste problema e impedir a destruição de seu reino. Ao atingir a nossa dimensão, Príncipe Adam se depara com um mundo totalmente diferente do seu, onde não apenas a magia não existe como todos parecem muito desconfortáveis quando seu aliado Fisto informa que tem como poder “enfiar o punho nas coisas”.
No final, mais do que salvar Etérnia, He-Man consegue uma vitória ainda maior, que é descobrir que a atração que sente por She-Ra é porque a criança que brinca com ele não entendeu direito o desenho e não porque ele é apaixonado pela própria irmã.
4.
É um dia normal em Gugulândia. O Pintinho Amarelinho do Gugu dá bom dia para o Gugu Equilibrista, que recebe a bênção do Anjinho do Gugu, enquanto o Bebê Dodói do Gugu chega montado no Upa Upa do Gugu até a Tenda do Gugu, onde mora o Gorila do Gugu. Porém, após uma série de incidentes em uma das rodadas de Gincana do Gugu que acontecem logo após o Passa ou Repassa do Gugu, o Guru do Gugu convoca todos os brinquedos do Gugu para uma reunião no Posto de Gasolina do Gugu, pois já se passaram meses desde a última vez que os cidadãos de Gugulândia sentiram a presença de seu deus, o eterno Gugu.
Atravessando um Portal do Gugu para o mundo real, o Pintinho Amarelinho do Gugu, agora transformado em um frango humanóide de 1,85m interpretado por Henri Castelli, busca de todas as maneiras desvendar o que aconteceu com sua divindade e descobre, chocado, que não apenas Gugu morreu, como sua família atualmente briga na justiça pela herança. Perseguido ao mesmo tempo pela Viúva do Gugu, o Namorado do Gugu e os Filhos do Gugu, que querem que ele deponha durante o Processo de Disputa dos Bens do Gugu, o Pintinho Amarelinho do Gugu se vê passando por situações traumáticas como ser acordado por um homem chamado Rodolfo que segura um microfone gigante ou ser enganado por Sônia Abrão, que garante ter acesso a uma vidente que consegue se comunicar com o falecido Gugu.
Finalmente resgatado pelo assistente de palco Liminha, o Pintinho Amarelinho do Gugu cruza novamente o portal para Gugulândia e fica aliviado ao notar que voltou a ser novamente apenas um Pintinho Amarelinho do Gugu em seu habitat natural. Mas esse alívio se transforma em terror ao perceber que algo está errado, já que ele não está em um lago, e sim uma banheira. E ao invés do sol, tudo que ele vê ao olhar pra cima, é a gigantesca mão do vocalista Salgadinho, do grupo Katinguelê, que disputa um sabonete com Luiza Ambiel.
Uma campanha
Arnaldo Branco
Burrice autoimune
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Numa das primeiras colunas que escrevi para a Conforme Solicitado falei sobre o meu espanto com a existência do movimento incel, principalmente porque quando eu estava na adolescência virgindade era uma parada que você não admitia e muito menos ostentava, ainda mais na forma de uma espécie de clubinho exclusivo.
É um pouco como a burrice: Nelson Rodrigues dizia que os imbecis do passado tinham pudor da própria imbecilidade e viviam se escondendo — até que se deram conta de que eram maioria e saíram de seus bueiros para dominar a cena. Mas hoje em dia é pior: os burros descobriram que além de companhia, têm público.
Porque agora os caras não estão ganhando apenas autoconfiança, mas também dinheiro — eles aprenderam que podem atrair uma enorme audiência de tapados que concordam com as besteiras que falam e monetizar a própria burrice. Monark que o diga. Mas é ainda pior: eles podem se eleger.
O estrago promovido no núcleo duro da extrema direita brasileira pela incrível inaptidão de uma de suas representantes mostrou que a estupidez une, mas também se auto-destrói. Depois da bomba inteligente inventaram a Carla Zambelli, um verdadeiro míssil de fragmentação de burrice que explodiu na cara de quem achou que seria uma boa ideia botar a sujeita em funções-chave do governo Bolsonaro.
E pensar que a gente teve que aturar uma galera que, surpresa com a descoberta da existência de tanta gente imbecil e motivada, passou a acreditar que havia um método genial nessa grande aglutinação de arrombados e chegaram a chamar os líderes do bolsonarismo de estrategistas.
Não eram: eles só juntaram multidões porque eram de fato tão burros quanto seus seguidores, e o sucesso de público se deu pela identificação, não pelo planejamento. Na hora de pensar o que fazer com toda aquela gente só saiu ideia de jerico, e foi assim que a gente acabou testemunhando aquele estouro da boiada no oito de janeiro. A burrice, como algumas doenças, é autoimune.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Uma saga do clone, but make it good
João Luis Jr
Por mais que hoje a Netflix seja conhecida como o serviço de streaming que faz filmes de 300 milhões de dólares que cinco minutos depois você não lembra que assistiu e séries que não são renovadas a não ser que 4 bilhões de pessoas tenham visto todos os 10 episódios de 40 minutos em até duas horas após eles estarem no ar, houve uma época em que as coisas não eram bem assim.
Afinal, alguns anos atrás a Netflix era a casa dos projetos cancelados pelos grandes canais, o lar dos filmes abandonados pelas grandes produtoras, uma espécie de Nárnia onde ideias que não cabiam tão bem no ambiente mainstream podiam habitar, com mais liberdade criativa e menos pressão por resultados.
E talvez ainda exista um pouco desse espírito em filmes como “Eles clonaram Tyrone”, uma produção distribuída pela Netflix e que mistura sci-fi e blaxploitation para contar a história de um trio improvável de protagonistas negros que se reúne para tentar parar uma conspiração que coloca em risco a sua vizinhança.
Com grande atuações de John Boyega, Jamie Foxx e uma incrível Teyonah Parris, é um filme que obviamente tem coisas para dizer sobre conflitos raciais nos Estados Unidos, a ideia de assimilação cultural e até mesmo os diversos estereótipos que o cinema apresenta quando fala de pessoas negras, mas faz isso usando não apenas a linguagem da ficção científica como também bastante humor e cenas de ação que, mesmo não sendo o cerne do filme, funcionam muito bem.
Uma dessas obras que talvez não conseguissem tantas salas durante um lançamento cinematográfico, “Eles clonaram Tyrone” é um exemplo de como a Netflix de vez em quando ainda pode ajudar a oferecer oportunidades para filmes muito interessantes mas que acabam não recebendo tanta atenção da mídia. Isso, claro, caso ele não apenas desapareça da home em 72 horas porque precisa abrir espaço pra um filme onde o Mark Wahlberg rouba um caminhão ou coisa assim. Acontece bastante.
Vida longa
Arnaldo Branco
Demorei pra resenhar o esperado disco de samba do Marcelo D2 (“Iboru”, ou em tradução livre do iorubá: “que sejam ouvidas as nossas súplicas”) porque queria ter certeza que não estava reagindo acima do tom quando chorei na primeira audição. Posso até ter reagido, mas chorei outras vezes quando voltei a ouvir, então talvez o problema seja um excesso de sensibilidade meu mesmo, vou tratar isso com o meu analista, se você não chorar tá tudo bem.
Mas me pegou muito. Desde “Povo de fé”, parceria com Luiz Antônio Simas, que estreou nos palcos com o público já sabendo a letra de cor, até a maravilhosa “Gandaia”, que teve sua melodia (“Quem tiver saudade / E quiser me ver / Vai na Piedade ao anoitecer”) tirada dessa entrevista sensacional com Romildo Bastos, compositor da Mocidade Independente de Padre Miguel e um dos favoritos de Clara Nunes, passando pela celebração da poesia (com Kiko Dinucci) em “Tempo de opinião”: “Hei de me lembrar de quem já tombou por mim / Não vou me entregar, não vou, o meu canto é guerra / E vai cobrir de terra quem desejou meu fim”.
A mistura de rap com samba que caracteriza o trabalho de D2 está lá, mas diluída, às vezes escondida, como no recurso de usar os graves do sequenciador como se fossem um surdo de marcação. O samba e seus temas estão em primeiro plano, a produção é incrível e as parcerias são uma lista VIP da música brasileira: Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Moacyr Luz, Xande de Pilares.
E a grande tese do disco está no trecho de poesia que Marcelo declama na última música, “Pra curar a dor do mundo”, enquanto ouvimos a voz de sua falecida mãe ensinando a fazer uma receita na cozinha: “O que eu senti, que eu sofri, sou eu / Sou eu quando eu quero / Até quando eu não quero ser / Por isso eu só morro quando o meu samba morrer”. Vida longa ao samba.
Camisa do Flamengo e São Jorge no escapulário
Gabriel Trigueiro
O VAI NA MINHA desta edição foi tomado de assalto pela Família Peixoto. Assim é que é bom. Aqui em casa não tem saído da agulha o novo do Sain, “KTT Zoo”. Tem tempo, muito tempo, que não escuto um disco de rap tão bem produzido. A produção é integralmente assinada pelo próprio Sain. O moleque tá abusado.
Os beats são todos brutalmente bonitos, minimalistas e jazzy, e é coisa de quem escutou demais, conhece e estudou gigantes como Madlib e J Dilla. Sain conseguiu misturar uma sonoridade de artistas como A Tribe Called Quest, Slum Village, Digable Planets a um sotaque carioca inconfundível.
“KTT Zoo” é um disco corajoso, porque aponta para o boom bap nova-iorquino dos anos 1990 em um momento de homogeneidade estética em que geral só quer saber de trap. Nada contra e tal, mas caraio.
Os feats são brabíssimos — tem Febem, tem Felp 22. Mas o destaque mesmo são os versos do Nochica em “Relíquia do Boom Bap”, rimados em uma base que lembra Wu Tang. Com gongo soando e o diabo a quatro.
O bairro do Catete (“TTK, área de lazer” para os íntimos) satisfeito sorri com essa pequena obra de arte.