Nem Barbie nem Oppenheimer, apenas Agnaldo Timóteo
Um dos momentos mais marcantes da televisão brasileira, que ajudou toda uma geração a começar a quebrar conceitos de binarismo que estivessem em seus corações, foi quando Agnaldo Timóteo, durante uma edição do programa "Superpop", logo após um convidado dizer que ele era gay assumido e Agnaldo responder "não sou não", soltou uma poderosa e conclusiva frase: "nem assumido nem desassumido, apenas Agnaldo Timóteo".
E num momento em que tanta gente parece disposta a forçar a barra em tantos tipos intensos e peculiares de rivalidade, com rixas virtuais entre a galera que acredita que sair de casa pra ver propaganda de boneca com duas horas de duração é besteira e o pessoal que se quisesse ver homem falando sobre bomba durante três horas se matriculava na Smart Fit, a Conforme quer sim ser esse safe space, esse ambiente seguro em que você pode gostar do que você gosta, seja Barbie ou Oppenheimer, seja Barbie e Oppenheimer, seja escrever sua própria fanfic onde um dia Oppenheimer acorda na casa dos sonhos da Barbie ao lado do Agnaldo Timóteo e descobre que a verdadeira bomba atômica são os amigos que fizemos pelo caminho.
Mas mais do que trazer essa palavra de acolhimento, trazemos também conteúdo, porque seria muito esquisito só colocar esses dois parágrafos e se despedir. O João nesta semana oferece algumas opiniões pré-fabricadas sobre o filme da Barbie, enquanto Gabriel fala sobre jornalismo que vende fofoca política como análise e o Arnaldo reclama de homem de uma forma geral. Além disso, temos as tradicionais dicas da redação e cartum, porque aqui o conteúdo não é nem pouco e nem muito. É Agnaldo Timóteo.
Quatro posições contundentes sobre o filme da Barbie que você pode ter lido na internet durante essa semana ou pode querer emitir na semana que vem
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Vivemos na era da “economia de atenção”. Ninguém tem mais tempo pra nada mas tudo está acontecendo ao mesmo tempo, todas as declarações precisam ser impactantes, todos “trazem verdades” e nuance é coisa de quem não tem coragem pra se posicionar de maneira firme. Ódio gera mais engajamento que amor, tudo é muito grave mas nada importa, o Twitter acabou, o Twitter mudou de nome, Eike Batista comprou o time do Coritiba e os hormônios do Chester estão transformando nossas crianças em podcasts.
Num contexto como esse, quando um tópico surge para debate, a única maneira de chamar atenção é assumir a posição mais intensa, contundente e combativa possível. Se todos estão falando de um disco, faz sentido dizer que achou ele “legal”? CLARO QUE NÃO! É preciso dizer que ele é O MELHOR DISCO DA HISTÓRIA DA MÚSICA, ou reforçar que ele é UM CRIME DE ÓDIO CONTRA OUVIDOS, QUE PRECISA SER PUNIDO COM A MORTE POR AFOGAMENTO NUMA PISCINA DE QUEROSENE EM CHAMAS. Existe um novo livro que as pessoas estão comentando? É preciso AMAR O LIVRO COM A FORÇA DE MIL SÓIS E QUESTIONAR A ÍNDOLE DE QUEM NÃO GOSTA ou ODIAR A OBRA COM A INTENSIDADE DE SEIS BOMBAS ATÔMICAS, UMA AMARRADA COMICAMENTE NA OUTRA, COMO SE FOSSE UMA ARMADILHA DO COIOTE PRA PEGAR O PAPA-LÉGUAS.
E agora que o filme “Barbie” finalmente foi lançado e está vivendo todo o ciclo de amor e ódio da internet, nós da “Conforme Solicitado” decidimos oferecer algumas opiniões já prontas pra você que quer muito participar do debate mas não pode gastar muito tempo com isso porque está absolutamente focado em brigar numa postagem sobre como “A Grande Família” é propaganda pró-monogamia.
“Barbie é uma armadilha do capitalismo” – Uma abordagem totalmente “necessária”, lembrar que um filme de boneca produzido por um dos maiores conglomerados midiáticos do mundo foi feito para ganhar dinheiro é realmente algo essencial, já que absolutamente ninguém deve ter imaginado que um filme de boneca produzido por um dos maiores conglomerados midiáticos do mundo foi feito pra ganhar dinheiro. É realmente algo que nunca aconteceu antes, e uma crítica que faz ainda mais sentido se você nunca tiver visto isso como problema em absolutamente nenhum dos outros grandes filmes de estúdio feitos pra vender bonequinho.
“Barbie resolveu todos os problemas do feminismo/Barbie retrocedeu em 200 anos o feminismo” – Duas posições igualmente fortes e que não devem abrir espaço pra nenhuma análise ou nuance entre elas, sendo obviamente uma questão binária que não permite debate. Pontos extras de atenção se você decidir assumir qualquer uma dessas duas posições sendo homem e quando alguma mulher comentar qualquer coisa você responder com “você não entendeu”.
“Barbie é um ataque a todos os homens” – Outra posição excelente, dizer que a representação do personagem Ken é ofensiva com certeza vai angariar atenção e fomentar o debate de maneira proporcional ao quanto você conseguir exagerar nas consequências do fato do personagem de Ryan Gosling se comportar como boa parte dos homens se comporta, com a diferença de que poucos de nós conseguem realmente dançar ou cantar minimamente bem. Nada sinaliza mais uma masculinidade potente e corajosa do que se sentir fisicamente ameaçado por um filme da Barbie.
“Não aguento mais o filme da Barbie” – Um clássico da internet, funciona muito se usado com o famoso “só eu que não vejo graça nesse filme?”, porque sinaliza que você é uma pessoa mais inteligente, de cultura superior, que espera mais da arte que consome, e não, em hipótese alguma, jamais, alguém apenas meio chato que está tentando se valorizar ao reclamar continuamente de alguma coisa que todas as outras pessoas estão achando relativamente divertida. Sério, vai na fé, essa é tradição.
Trabalho extra
Arnaldo Branco
“Os bastidores do poder”
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Um dos muitos cacoetes da cobertura política da grande imprensa é apresentar como análise aquilo que é meramente fofoca. Uma das estratégias mais batidas é batizar a fofoca com algum nome pomposo tipo “os bastidores do poder”, ou alguma cafonice dessas.
Veja, não é nem que eu seja contrário a esse tipo de cobertura. Eu só acho que ela tem hora e lugar para ocorrer. Nos EUA, por exemplo, Bob Woodward fez uma carreira tornando-se um insider na Casa Branca, tendo franco acesso aos seus corredores e salões, e meio que sendo o fofoqueiro oficial de Washington. Nessas, derrubou um presidente. Parabéns pra ele.
Também não acho ruim que exista o The Sun na Inglaterra. O papel de vigiar (fofocar) a vida de Trabalhistas, Conservadores e, claro, da Coroa, redunda em uma responsabilização dos atores envolvidos maior do que, me parece, haveria se ele não existisse. Mas, repare, não é a cobertura, em tom e substância, de um Guardian ou até de um Telegraph.
O problema é que aqui no Brasil são os jornalões que fazem a fofoca, quando deveriam fazer análise. Por exemplo, não tem muito tempo, um dos nossos principais portais de notícias estava anunciando um “desconforto” da equipe ministerial do governo Lula com o Ministro da Justiça Flávio Dino.
Além de não se basear em qualquer tipo de evidência objetiva, a tônica da matéria era a adjetivação abundante, juízos subjetivos e verbos conjugados no futuro do pretérito (“teria”, “seria” etc.).
Em entrevista recente com Fernando Haddad, o Ministro da Fazenda tirou um Beatles no violão (nada contríssima), disse como estava “se sentindo”, mas a impressão que ficou foi a de que saímos da entrevista absolutamente do mesmo jeito que entramos.
Também em matéria publicada em um dos principais jornais do país, lemos que Janja “gera incômodo em aliados” e mais um tantão assim de fofocas, capazes de constranger até a Dona Ana — uma velha fofoqueira da cabeça branca, que era minha vizinha, quando eu morava com meus pais e avó em Campo Grande.
Assim, nada contra a arte da fofoca, imagina, mas convém chamar as coisas pelo nome, né? Não é pedir demais, jornalismo, plmdds.
Ninguém quer ser advogado de homem
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Uma crítica que você ouve muito quando é homem e fala bem de “Barbie” ou fala mal dos outros homens que se doeram com a mensagem do filme é a de que você quer ficar bem com a mulherada, ou como dizem no twitter: quer migalhas de b*ceta.
Pode ser que exista homem assim, que diferente de quem o acusa de ser mendigo de afeto, acha que agradar mulher pode ser uma boa estratégia de aproximação — em vez de fazer como seus críticos, que aparentemente empacaram nos métodos da quinta série, quando dar estilingada em elástico de sutiã era uma maneira socialmente aceita de chamar atenção.
Mas meu caso é outro. Estou muito velho para mudar minhas atitudes para agradar quem quer que seja, homem, mulher, animais. Assim como tive que me adaptar aos cacoetes dos meus bichos de estimação pra tornar o convívio possível, eles tiveram que se render aos meus. Aqui em casa ninguém cede um milímetro.
Isso tudo pra dizer que não tem nada a ver com as queixas das mulheres o fato de que eu também não gosto de homem — não no caso a caso, mas como instituição, assim como não gosto, por exemplo, do Fluminense Football Club e tudo que ele representa, só abrindo exceções para uns poucos chegados que eu suporto com enorme paciência.
“Ah, mas você é homem”. Sim, assim como muita gente trabalha em um ambiente tóxico mas não se sente obrigado a vestir a camisa da empresa.
Sou solidário às mulheres com a mesma base de referência que levou o Muhammad Ali a recusar a convocação para lutar na guerra do Vietnã, alegando que não tinha nada contra os vietnamitas — não eram eles que o obrigavam a usar bebedouros separados e se recusavam a servi-lo em restaurantes.
É por causa de uma série de decisões de homens, e não de mulheres, que acabei chegando aos últimos estágios do capitalismo, numa idade em que seria razoável começar a pensar em aposentadoria, sendo obrigado a aceitar cinco trabalhos simultâneos para receber uma quantia mensal razoável — e sem poder reclamar porque tem gente sem nenhum.
As mulheres fariam pior no poder? Talvez, mas nunca saberemos, já que o mundo está programado para acabar em algumas décadas, pelo trabalho de homens. Com sorte, elas não vão ter tempo nem de se vingar.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Era por isso que vovó dizia pra não mexer com quem está quieto
João Luis Jr.
Poucas coisas estabelecem tão firmemente um personagem como vilão de uma narrativa do que o esforço em procurar conflito com um personagem que não quer conflito. A ideia de que uma pessoa está apenas vivendo sua vida, sem fazer nada de errado, enquanto outra pessoa decide, sem uma boa justificativa, tomar uma ação contra ela, gera relações de simpatia e antipatia muito claras em quem está assistindo, muito porque a maior parte de nós quer apenas ficar de boa mesmo.
É isso que gera o apelo de filmes como “Rambo”, em que o veterano de guerra quer apenas passar pela cidade em paz, “Taken”, em que os caras decidem sequestrar a filha do cidadão errado ou “John Wick”, em que absolutamente nenhuma daquelas 50 mil pessoas teria morrido se a rapaziada apenas aceitasse que o Keanu Reeves não queria vender o carro dele.
A mesma lógica é usada no divertido filme finlandês “Sisu”, em que um garimpeiro está tranquilamente tentando chegar até a cidade mais próxima levando o ouro que finalmente conseguiu encontrar, até ser abordado por um grupo de homens decididos a atrapalhar seu dia. Porém “Sisu” oferece um fato extra para aumentar ainda mais a sensação de catarse que surge quando vemos vilões gratuitamente escrotos descobrindo que mexeram com a pessoa errada: neste filme os vilões, além de babacas, são também nazistas.
Sim, porque o filme, passado durante o período final da Segunda Guerra Mundial, retrata a fase de retirada das tropas alemãs do território finlandês, onde elas estavam aproveitando suas últimas oportunidades para cometer todo tipo de atrocidades. O que apenas torna mais divertido e emocionalmente recompensador ver como esse garimpeiro que, nas cenas iniciais já tem a aparência de quem foi atropelado por ao menos dois caminhões, se mostra absolutamente incapaz de morrer e vai dizimando seus inimigos de maneiras cada vez mais absurdas, criativas e absolutamente irreais.
Então se você gosta de ver homens que não morrem após pular de aviões sem paraquedas, gente levando facada na cabeça e um cidadão ateando fogo no próprio corpo como parte de um plano pra matar nazistas, “Sisu” é sim uma das melhores recomendações possíveis e não apenas merece sua atenção como tranquilamente duas ou três continuações.
Na cara da ditadura
Arnaldo Branco
Seguindo com a fase de sugerir coisa antiga porque ando tão sem tempo pra checar novidade que sou obrigado a revisitar obras do meu agrado, evitando assim o risco de acabar assistindo alguma bomba que seja impossível de indicar. Então fui no Mubi rever “O caso dos Irmãos Naves” (1967) de Luiz Sérgio Person para ver se o filme ainda segura seu lugar entre os melhores que já vi.
(Eu sei que seu professor da UFF já mandou conferir esse e você esperava que eu adicionasse algo mais obscuro à sua lista, mas a culpa é sua por alimentar expectativas infundadas com resenha de newsletter)
Voltando: o filme não só sustenta o posto como acho que até que subiu algumas posições — se eu fosse um desses caras que realmente mantém um ranking anotado, olha bem pra minha cara. E como Person fez outro dos meus filmes favoritos, “São Paulo S.A.”, talvez esse diretor que morreu aos quarenta anos (veja o documentário dirigido por sua filha igualmente talentosa, Marina) esteja ameaçando o lugar do Rogério Sganzerla no meu particular cânon hipotético.
“Naves” conta a história real de dois homens que acusam um terceiro de fugir com o dinheiro do seu pequeno negócio e acabam presos e torturados, denunciados injustamente pela suposta morte do acusado e pelo roubo da quantia. A história é narrada a partir dos autos do processo, em um recurso sensacional, e apesar de contar com nomes como Raul Cortez, Anselmo Duarte e Juca de Oliveira, o elenco é praticamente todo de amadores. É o triunfo da montagem sobre os riscos da qualidade bruta do material.
E bicho, era 1967. Olha se esse cartaz pra gringa não é a representação da coragem suicida em forma de peça gráfica:
Enfim, assistam e debatam — não comigo, com seu professor da UFF, olha bem pra minha cara.
O outro filme da Barbie
Gabriel Trigueiro
É meio chato quando te ocorre uma ideia que a princípio te parece original e interessante mas que depois de uma googlada você percebe que um tanto de gente pensou na mesma coisa, e mais ou menos com o mesmo timing. Paciência, continuo gostando da ideia e não vou descartá-la não.
O fato é que o hype do filme da Barbie me lembrou de “Superstar: The Karen Carpenter Story”, curta experimental de 1987 dirigido por Todd Haynes e coescrito com Cynthia Schneider, na época em que Haynes ainda estudava no Bard College, em Nova York. É uma biopic doidona e absolutamente maravilhosa da Karen Carpenter, a alma dos Carpenters.
Os Carpenters surgem em meados da década de 1960 e explodem mesmo ao longo dos anos 1970, em meio a todo clima de contracultura e desagregação social da época (Vietnã, direitos civis etc.), como uma resposta conservadora e pró-família à instabilidade da juventude cabeluda e drogada.
O filme mostra, entretanto, como Karen foi pega à revelia, no meio desse turbilhão, e acabou sendo usada como avatar de uma agenda política a qual jamais havia subscrito.
O curta foi filmado com o uso de bonecas Barbies e conta os 17 últimos anos da vida trágica de Karen Carpenter — que lutava contra a anorexia nervosa, as engrenagens de um show business estruturalmente misógino e uma família abusiva e autoritária.
Em um dado momento, lemos na tela a legenda “We will see how Karen’s visibility as a popular singer only intensified certain difficulties many women experience in relation to their bodies”. Haynes se utiliza de bonecas para paradoxalmente conseguir um realismo doloroso e intenso.
O filme usou, sem pagar os direitos, um monte de canções dos Carpenters, e por isso o irmão de Karen, Richard Carpenter, proibiu judicialmente o seu lançamento nos cinemas. O fato é que Richard Carpenter é mostrado com um grande arrombado no filme de Haynes e não gostou daquilo que viu.
Também é engraçada a história de que o jurídico da Mattel quis morder uma grana do filme, pelo uso indevido da Barbie, mas se fodeu porque Todd Haynes argumentou brilhantemente que tinha usado apenas imitações da Barbie, aquelas versões piratonas compradas por famílias de baixa renda, em garage sales e tal.
“Superstar: The Karen Carpenter Story” de quando em quando é colocado no YouTube, mas é invariavelmente derrubado na sequência. Ao longo dos anos ganhou o status de obra cultuada e é possível que agora obtenha alguma notoriedade com o filme da Greta. Sinceramente eu espero que sim, porque é bonito demais: engana-se quem enxerga ironia na visão de Haynes.
É uma meditação compassiva, e a um só tempo delicada e violenta, sobre uma personagem complexa e talentosa do século passado. Viva Karen Carpenter. E obrigado à minha mãe que me apresentou aos irmãos Carpenters lá nos longínquos anos 1980. Te amo, mãe.