Conforme solicitado #50
Nem tão de repente 50
Então chegamos ao número 50 da Conforme Solicitado. A gente queria dizer que parece que foi ontem que tivemos a ideia de acrescentar mais uma tarefa na nossa já sobrecarregada lista de coisas para fazer durante a semana, mas na verdade não parece não. Nós sentimos cada uma dessas edições como se fossem mais uma série para fazer na Smart Fit enquanto um personal trainer aumenta a nossa carga e o número de repetições e grita no nosso ouvido que frango nem é gente.
Dizem que o tempo voa quando você está se divertindo, o que não foi nem um pouco o caso. Em 2023 tá todo mundo em uma corrida de recuperação depois do desastre econômico dos últimos quatro anos — essa edição é a cinquenta porém com um corpo de 83.
Por isso vale lembrar que você pode fazer algo para aliviar nossa dor e assinar a Conforme por um dos nossos planos remunerados (mensal, R$ 15, anual, R$ 150 e anual plus, R$ 250) e proporcionar alguma diversão para esses três trabalhadores tristes.
Nessa edição Arnaldo fala sobre a representação masculina no filme da Barbie e do caso “viúvo do twitter" (com contextualização pra quem perdeu o rolé, pode deixar); João discorre sobre pessoas que prejudicam reuniões e Gabriel resenha “How to With John Wilson” uma nova série da HBO. Além disso tem dicas, o cartum do Arnaldo e muitas opiniões que, como fica claro no nome da newsletter, você solicitou SIM.
E rumo ao centésimo número, yay.
Representatividade importa
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Outro dia saiu uma matéria com um compilado de críticas reclamando que no filme da Barbie todos os personagens masculinos são idiotas tristes e patéticos (muita gente aproveitou para comentar que não sabia que a parada era um documentário). Só o fato do pessoal ter se doído desse jeito prova o ponto do filme: tem que ser muito patético mesmo pra ficar incomodado com a forma como o seu gênero é representado na cinebio de uma boneca de plástico.
Mas o maior problema de representação do sexo masculino tem acontecido na vida real mesmo. Vou ilustrar com um caso: essa semana um sujeito que era conhecido como “viúvo do twitter” porque postava declarações de amor diárias para sua falecida esposa foi exposto por uma amante — que ele enrolou por vários anos usando o velho papo de que estava prestes a se separar — como um mulherengo incorrigível que aproveitou a fama adquirida com seu luto exibicionista para abordar ainda mais contatinhos em potencial.
(Desde já peço desculpas por escrever sobre uma polêmica da rede do Elon Musk em duas colunas consecutivas, mas não aconteceu muita coisa na minha vida nessa semana além de acompanhar fofoca online)
Primeiro, calma: não estou julgando ninguém nessa história. Desejo descalibrado e comportamentos contraditórios são típicos da vida adulta — mente quem diz que nunca esteve em uma situação com implicações morais parecidas (mesmo que mais brandas) e mente pra si mesmo quem diz que nunca vai estar.
Pra mim a única questão está no fato de que a necessidade de agir melhor com as mulheres está tão dada, é tão premente, é tão óbvia, que gera coisas como esse perfil que tenta capitalizar a carência por homens que ajam de acordo. Muitas mulheres afirmaram se sentir traídas e decepcionadas — claro que existe um componente mórbido em acompanhar declarações de amor de um carinha para uma falecida, mas dá para entender o sentimento: “até esse aí”?
Muita gente fez a ressalva de que pessoas elaboram de formas diferentes seu luto, mas até o viúvo influencer deve ter percebido a contradição entre a sua performance virtual e seu comportamento privado porque apagou suas redes sociais minutos depois do primeiro tuíte da sua ex-amante expondo o caso. Já ela seguiu com sua presença online para receber o julgamento dos outros sozinha.
Enquanto os homens, mesmo os que demonstram alguma preocupação em manter uma postura de respeito e interesse pela figura da mulher — ainda que para fins performáticos, como no caso dessa devoção póstuma alardeada pelo viúvo — continuarem a deixar claro que essa postura não se sustenta na vida real, vai ficar difícil sair bonito na foto no filme da Barbie.
O mundo segundo John Wilson
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Só descobri agora, zapeando pela HBO Max, “How to With John Wilson”. É uma série documental, com episódios com menos de meia hora cada, nos quais o tal do John Wilson investiga, a princípio pelas ruas de Nova York, como se faz alguma coisa muito específica.
O primeiro episódio, por exemplo, se chama How to Make Small Talk e, como o nome sugere, é uma investigação de Wilson acerca de como papear despretensiosamente com desconhecidos pelas ruas.
O que é fascinante é que embora o plot de cada episódio seja muito específico e simples (How to Cover Your Furniture, How to Appreciate Wine e How to Be Spontaneous, por exemplo), Wilson é movido por um senso de encantamento com o mundo e uma curiosidade quase infantis, que acabam o levando para lugares inesperados.
Aliás, o que pauta toda a série é um desejo de conexão genuíno. Como quando na finale da primeira temporada, Wilson investiga como cozinhar o risoto perfeito para a sua vizinha, uma velhinha que, claro, ama risoto.
O episódio foi gravado bem no início da pandemia e é estranho e tocante observar aquele momento de tristeza profunda e incertezas, agora mais ou menos de longe.
Embora John Wilson seja um hipster nova iorquino, e evidentemente a série tenha esse humor muito específico aqui e ali, no fim das contas o que é interessante é o fato de que não há qualquer traço de cinismo, ironia ou deboche, em quaisquer das muitas interações absolutamente estranhas que ocorrem ao longo de “How to With John Wilson”.
É uma série em que cada episódio tem qualquer coisa daqueles ensaios do David Foster Wallace (“Consider the lobster”, “Shipping Out” e “Ticket to the Fair”, por exemplo). A mesma curiosidade apaixonada por tudo e a mesma capacidade de digressão verborrágica, autoconsciente, existencialista e engraçada.
“How to With John Wilson” é um documento bonito de doer sobre a capacidade de conexão humana e o nosso senso de encantamento pelas coisas do mundo. Um dos produtores é o Nathan Fielder, um dos favoritos do meu irmão João Luís, o que me parece ser sempre um excelente selo de qualidade.
Em breve, acho que agora no final de julho, estreia a terceira temporada.
Os quatro cavaleiros do apocalipse das reuniões
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Contrariando normas estabelecidas pela Convenção de Genebra, o Pacto Global das Nações Unidas, a Constituição Brasileira de 1988 e o novo Estatuto Social do Botafogo de Futebol e Regatas, seu gerente marcou aquela reunião pras 11:30. Ele disse que ia ser rápido, ele afirmou que ia acabar antes de meio dia, ele garantiu que era só pra resolver uma questão pontual urgente e pronto, todo mundo tava liberado. São 12:00 e tem gente com fome querendo almoçar, gente com filho precisando buscar criança no colégio, alguém já falou, dez minutos atrás, que tem consulta médica marcada e precisa sair. Está batendo meio dia e vinte oito, o chefe já agradecendo a equipe, gente já se despedindo, e aí surge uma voz que diz “pessoal, sei que já tá passando um pouquinho do horário, mas queria só pontuar uma coisa....”
Você está em absolutamente qualquer ambiente que não os estúdios da TV Cultura, em qualquer período que não o compreendido entre 6 de agosto do ano 2000 e 28 de abril de 2015 e qualquer pessoa que não o finado apresentador Antônio Abujamra pronuncia a frase “eu queria apenas deixar uma provocação...”.
O clima não é bom, a energia não está lá no alto. Sua empresa vem trabalhando num esquema misto de home-office e presencial em que o presencial consiste em ir presencialmente participar de reuniões on-line com as pessoas que estão de home-office. Duas demandas que eram pro mês que vem subitamente passaram a ser pra hoje, um cliente que demorou 20 dias pra analisar um texto agora quer uma nova versão em 20 minutos, gestores de projeto que haviam saído pra comprar um cigarro cinco anos atrás decidiram exercer a paternidade ativa no trabalho e estão te enchendo de perguntas. No meio disso, é claro, tem uma reunião de status, daquelas que podem ser rápidas se todo mundo realmente só reportar seu status ou podem demorar 127 horas se cada pessoa decidir contar tudo que aconteceu durante a semana. O primeiro colega inicia sua fala com uma detalhada narrativa do status da doença de um dos 8 cachorros dele.
Segunda-feira é feriado, sexta-feira é hoje, a reunião é agora. O tanque do carro tá cheio, o Airbnb tá reservado, você tá se preparando pra estrear uma sunga que é a conquista conjunta da sua terapeuta e da Smart Fit. Namorada já tá com a mala dela pronta, fazendo aquela horinha se atualizando sobre confusão do Twitter. São quase cinco da tarde e a reunião correndo, movida pelo impulso coletivo de encerrar essa semana o quanto antes porque todo mundo ali tem sonhos, anseios e projetos. Coordenador mandando só perguntas objetivas que podem ser respondidas com “sim” ou “não”, os colegas usando frases que aquecem o coração como “conversamos melhor sobre isso no privado” ou “podemos deixar pra segunda”, e tudo sendo encerrado pontualmente às 17:00 quando alguém repara que tem uma mãozinha levantada no Teams. E enquanto pessoas prendem a respiração, crianças choram no banco de trás do carro e alguém confere o horário no cartão de embarque, uma voz maligna diz “então, sei que esse não é bem o tema da reunião, mas sobre aquela demanda...”
Vai na frente que eu vou depois
Arnaldo Branco
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Patolino e o dinossauro
Gabriel Trigueiro
A dica de hoje é “Daffy Duck and the Dinosaur”, um desenho de 1939 do Patolino, dirigido pelo gênio da animação Chuck Jones. Sou fã obcecado dos Looney Tunes e tenho um carinho especial por esse daí. É o primeiro em que Jones “dirige” o Patolino.
Até então seus desenhos eram muito semelhantes aos da Disney: eram baseados majoritariamente nas histórias e na animação, mas “Daffy Duck and the Dinosaur” é uma inflexão nesse sentido, porque a ênfase está o tempo todo nas piadas nonsense e aleatórias — algo que mais adiante iria caracterizar todo o estilo de animação dos Looney Tunes.
É um desenho em que o Patolino ainda não é o Patolino que conhecemos, cuja identidade foi mais ou menos elaborada por Chuck Jones e Friz Freleng, ao longo das décadas de 1940 e 1950: ressentido, invejoso, inteligente e meio azarado. Em resumo, o frenemy perfeito para o Pernalonga.
Em “Daffy Duck and the Dinosaur” ele ainda é um, digamos assim, early Patolino, completamente totó das ideias e que fica gritando "woo-hoo" o tempo todo, igual a um doidinho. Ainda é, em outras palavras, o Patolino do Tex Avery.
Mas, assim, bora falar sobre o desenho. É uma animação ambientada na Idade da Pedra, mas uma Idade da Pedra na qual homens das cavernas convivem com dinossauros, que são tratados como pets. Apenas porque sim.
Daí que um dia um homem da caverna, que tem a cara do Jack Benny, acorda com fome de pato. Daí você já viu onde essa história vai parar, né.
São oito minutos de pura arte e diversão. Atenção ao final: completamente violento, absurdo, engraçado e diferente de tudo o que era feito até então nas animações.
Aproveita que está na íntegra no YouTube.
O tempo parece parar quando estamos juntos (transando)
João Luis Jr
Por mais que em dados momentos pareça se resumir a histórias de super-heróis, os quadrinhos são uma mídia fértil para diversos outros gêneros e temas, que vão desde biografias e jornalismo literário até crime noir e histórias sobre casais que descobrem que quando atingem um orgasmo conseguem parar o tempo e decidem usar esse poder para roubar um banco.
E é nessa última categoria, um tanto quanto específica, que se encaixa "Sex Criminals", uma HQ da Image Comics, brilhantemente escrita por Matt Fraction e com excelente arte de Chip Zdarsky, que consegue ter ao mesmo tempo uma das premissas mais absurdas já colocadas no papel (ela nasceu de uma conversa entre os autores em que a frase "e se sempre que um cara gozasse ele fizesse o tempo parar??" foi dita) e abordar alguns dos temas mais humanos e realistas possíveis (relacionamentos, insatisfação com trabalho, dificuldades na terapia).
Então ainda que realmente seja uma coisa complicada de ler no metrô, porque as pessoas vão ficar reparando no título, "Sex Criminals" (que tem só 30 edições, então está longe de ser uma leitura longa ou complicada) é desses quadrinhos que valem a atenção não apenas pela qualidade da história mas também pelo quanto consegue aproveitar as possibilidades da mídia em que se encontra e explorar os seus limites criativos.
Consciência de classe
Arnaldo Branco
Saíram vários discos bacanas de rap por esses dias (e quando falo “esses dias” quero dizer dias de meses atrás, a correria do trabalho tá embotando minha noção de tempo legal): “Músicas para fumar balão” do Derxan e do Big Bllakk, “KTT ZOO” do Sain, “Jesus ñ Voltará” do Mateus Fazeno Rock, mas aqui vou falar do que eu mais tenho ouvido: “Taurus” da rapper Duquesa.
(Aliás, uma ressalva: tem bem mais do que rap nesses discos todos, principalmente no do Mateus)
Nem sei se a gente ainda deveria chamar de disco um apanhado de músicas com um total de execução de vinte minutos — que parece ser a minutagem média dos últimos lançamentos do gênero, provocada pela urgência de um mercado que depende mais do potencial de difusão espontânea do que de estratégias de lançamento — e que afinal não sai mais em um suporte físico em forma de disco (:P); mas é um bom resumo do trabalho da Duquesa.
“Taurus” foi concebido pela rapper com o objetivo claro de te botar para dançar enquanto lembra que está subindo na carreira porque merece muito: “eu não preciso de elogio, eu só me olho no espelho". Na primeira faixa ela se define como “Classudona", que também é uma boa forma de definir a produção de "Taurus”. Duquesa já foi longe e ainda vai mais.