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Mais uma semana de correria onde os textos da edição foram adiados até o limite do prazo por causa dessa inconveniência da vida adulta, o trabalho. Se ele ainda nos conferisse uma existência de luxos nababescos através de polpudos contracheques, poderíamos listar essa newsletter como um hobby exótico, uma concessão de três dândis de meia idade para o povo agradecido. Mas não, o capitalismo tardio transformou todo mundo no chato da wikipedia pedindo dinheiro para inteirar as nossas contas.
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Nesse número o João fala sobre Marcos Pontes, o nosso astronauta multitarefa (porque também é mascate), Gabriel resenha o livro Better living through criticism (puta nome foda) e Arnaldo relaciona a nossa realidade presente com algumas distopias — que ficam bem na fita na comparação.
Sexta-feira, oito horas da manhã e a gente já está olhando pro relógio de ponto. É na ponta dos dedos, Brasil.
Para que servem os críticos?
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Em 2012 o crítico de cinema do New York Times, A.O. Scott, não imaginava o tamanho da briga que estava comprando quando escreveu uma resenha negativa sobre “The Avengers: The Age of Ultron”. O que se seguiu à resenha foi uma reação histérica de trolls, fanboys e até de um dos astros da franquia, o próprio Samuel L Jackson, que chegou a tuitar “AOScott needs a new job! . . . One he can actually do!”.
O ano agora é 2016. A.O. Scott publica “Better Living Through Criticism” — um livro não apenas sobre o papel do crítico na sociedade, mas uma historicização da crítica como ofício e arte, seus fundamentos filosóficos e tal e coisa.
A.O. Scott escreve bem, com erudição e elegância, e passa de Immanuel Kant e Edmund Burke a Ratatouille e ao hip hop, na mesma sentença e no mesmo fôlego, sem jamais soar falso, populista ou forçado.
Scott argumenta que a percepção de que há uma separação e antagonismo entre as artes e a crítica é um engano grosseiro. Ele recorda de gente como Baudelaire, George Bernard Shaw, TS Eliot e Godard — todos excelentes críticos, além de artistas do primeiro time.
Além disso, Scott também pontua que toda obra de arte está em diálogo constante com a tradição: ora se filiando à alguma escola ou corrente, ora se opondo a obras, artistas e a movimentos. O que nos permite concluir que toda arte é, isso mesmo, uma forma de crítica.
A.O. Scott também argumenta que embora a cultura contemporânea, do hip hop a autores como Quentin Tarantino e os Irmãos Coen, esteja completamente imersa em comentários metalinguísticos e derivativos, além do já batido humor autorreferente, esse troço não é, a rigor, consequência de uma dieta rica em pós-modernismo, como conservadores gostam sempre de falar, mas sim a descendência direta de alguém como Shakespeare, que misturava história com folclore, alta e baixa literatura, comédias latinas, Ovídio, esquetes de commedia dell'arte e o que mais desse na telha.
Em “Better Living Through Criticism”, A.O. Scott define o ofício da crítica como uma mistura de “intuição, julgamento e conjectura”. Para ele, aliás, a crítica não é apenas uma arte qualquer, que deve ser compreendida a partir de seus próprios termos e tal, mas, na verdade, a maior das artes.
A defesa desse argumento ao longo do livro é convincente, bem-humorada, erudita e um antídoto eficaz ao antiintelectualismo que tem ajudado a corroer aquilo que alguém já chamou, em tempos remotos, de “o Bom, o Belo e o Verdadeiro”.
Distopias desejáveis
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Desde sempre a gente consumiu obras de ficção que nos ameaçavam com um futuro assustador, onde a luta pela sobrevivência roubaria o prazer de viver da maior parte da humanidade — mas nenhuma delas nos preparou para os dias de hoje e para os últimos estágios do capitalismo. Vamos ver como algumas dessas obras envelheceram mal — ou bem, dependendo da perspectiva.
1984, George Orwell
Na trama de 1984 (que como 2001 é um exercício de futurologia onde o autor chutou muito poucos anos para a frente) o cidadão vive sob constante vigilância e não tem mais nenhum direito a privacidade — bom, a gente já entrou nessa fase faz tempo. Mas no livro de Orwell todo mundo tem um trabalho — alguns bem degradantes, mas nada parecido com ser garçom do Outback e ter que fazer coreografia de feliz aniversário pra cliente. Ponto para 1984.
Além do mais, o ritual de lavagem cerebral a que os personagens do livro são obrigados a se submeter se chama “dois minutos de ódio” — que é um tempo razoável para um rito purgatório, principalmente se comparado às horas diárias de raiva gratuita que a gente passa no twitter. 1984 tinha que tomar umas aulas de desesperança com 2023.
Admirável mundo novo, Aldous Huxley
Na distopia do Huxley o governo distribui uma droga completamente eficaz que acaba com as dúvidas e inseguranças da população — ou seja, além de ser legalize, tem uma espécie de SUS. Sim, nesse futuro rola uma parada bem eugenista de escolher as características físicas da sua prole tipo sanduíche do Subway, mas o conceito de família não existe, o que tornaria o bolsonarismo bem mais complicado de implementar.
Fahrenheit 451, Ray Bradbury
Nesse futuro fictício, os bombeiros exercem uma função bem diferente da profissão tradicional: em vez de apagar incêndio, eles queimam livros. Além desse trabalho ser bastante facilitado no mundo de 2023, quando você pode torrar milhares de publicações só botando fogo em um Kindle, eu totalmente estaria do lado dos bombeiros quando eles tivessem a missão de meter o lança-chamas naquelas bancas de aeroporto onde você pode comprar duzentas variantes de livros tipo “A sutil arte de ligar o foda-se” e “Os segredos da mente milionária”.
Eu, Robô, Isaac Asimov
No livro do Asimov os andróides são programados com uma diretriz onde fica estabelecido que eles não podem ferir humanos e são obrigados a acatar suas ordens. Depois da experiência recente em que um programa de inteligência artificial alimentado com o conteúdo da internet levou apenas alguns dias para defender um bando de ideia fascista, eu totalmente trocaria de futuro com a realidade do livro. Hoje é capaz de você pedir para o ChatGPT fazer o seu trabalho e ele começar a escrever a sua carta de demissão.
O homem do castelo alto, Philip K. Dick
O livro apresenta um mundo alternativo onde os nazistas ganharam a guerra e dominaram o mundo. Talvez fosse um lugar menos cínico do que o de hoje em dia, onde eles perderam mas mesmo assim são bem vindos ao debate numa coisa que se convencionou chamar o grande mercado de ideias.
E pelo menos ia acabar esse papo de que nazismo é de esquerda.
Não reaja
Arnaldo Branco
There's a starman waiting in the sky. He'd like to come and meet us, but he has travesseiros pra vender
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
É preciso um certo esforço para se destacar num grupo tão variado e absurdo quanto aquele formado pelo antigo governo bolsonarista, um grande catadão que envolvia pessoas oportunistas, pessoas malucas, pessoas de péssimo caráter e pessoas oportunistas, malucas e de péssimo caráter. E claro, filhos da puta. Assim, vários filhos da puta.
Nós temos o ex-presidente genocida que oferecia remédio pra ema e tenta encaixar em todas as conversas o fato de que ele não broxa, o que transmite a sensação de que ele broxa bastante; temos o ex-ministro da economia que parecia estar preso num teste para o papel de Caco Antibes num reboot de "Sai de Baixo" financiado pela FGV; nós tínhamos desde assessores que guardavam pauta impressa de golpe na gaveta de casa até militares que negam em juízo que apoiaram o golpe enquanto estão de frente pra registros telefônicos deles apoiando o golpe.
Em suma, é sim uma galerinha do barulho.
Mas mesmo no meio desse grande jogo "Cara a Cara" em que a principal característica de todos os personagens é "ser um arrombado", poucas figuras conseguem ser tão fascinantes e emblemáticas pra mim quanto ele, o astronauta brasileiro Marcos Pontes.
Mas não pela sua capacidade de, por exemplo, conseguir sozinho e apenas com o próprio esforço, transformar em sinônimo de picaretagem algo que todo o complexo industrial e cultural norte-americano gastou décadas para associar com heroísmo, inteligência e admiração.
Afinal, nos filmes os astronautas saem da Terra para descobrir novos planetas, realizar descobertas científicas, às vezes até mesmo explodir um asteroide que está vindo na direção do planeta - mas apenas nos filmes em que isso não é realizado por profissionais de mineração. Já Marcos Pontes saiu da Terra, numa missão caríssima, literalmente fez experiências com feijãozinho no espaço, voltou pro planeta e, quando esperavam que ele fosse transmitir tudo que aprendeu, deu entrada na aposentadoria com 43 anos e virou coach. Sim, um pequeno passo para a ciência brasileira mas um grande salto em termos de nunca mais trabalhar.
E também não é por, como se não fosse pouca coisa danificar a reputação da categoria profissional "astronauta", Marcos Pontes fazer questão de aceitar o convite para ser ministro da Ciência e Tecnologia no governo Bolsonaro, o equivalente a ser, por exemplo, coordenador de veganismo na Churrascaria Fogo de Chão ou responsável pela Turma do Deixa Disso no UFC 555 realizado dentro de um ônibus quebrado na Avenida Brasil.
E também não é pelo fato de que, quando no cargo, ele não apenas não se posicionou de maneira alguma em defesa da ciência, participando da exoneração do então Presidente do INPE Ricardo Galvão, como ficou afastado durante 33% dos seus dias de trabalho, e tornou o ministro que mais circulou durante o governo, com 107 viagens internacionais, levantando a possibilidade de que Marcos Pontes nem gostava muito desse lance de espaço, ele apenas viu uma possibilidade de viajar de graça pra algum lugar e abraçou.
Mas isso também não é o pior, assim como não é o pior o fato de que ele, depois de sair do governo e voltar a ser coach, estava vendendo em seu site pacotes turísticos para visitar os destroços do Titanic – o mesmo tipo de passeio que não deu tão certo pra uma galera aí recentemente.
Não, pra mim o pior, o que realmente me quebra em relação ao Marcos Pontes, é o fato de que no “travesseiro da NASA”, do qual ele é garoto-propaganda, a sigla NASA, não diz respeito a “National Aeronautics and Space Administration”, mas sim a, e não estou de sacanagem, “Nobre e Autêntico Suporte Anatômico”. Nobre e autêntico, irmão. Porque os caras nem podiam se dar ao trabalho de ao menos pensar em uns termos que ao menos soassem científcios, tipo “Novo e Avançado”, “Nosográfico e Atômico”, “Neurológico e Autóctone”. Não, nada disso. Os caras tinham que meter “Nobre e autêntico.”
Depois os brasileiros passam a torcer pra nave espacial explodir e ninguém sabe por que.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Apenas Karriem fucking Riggins
Gabriel Trigueiro
Hoje a recomendação é “Alone together”, disco de 2012 de Karriem Riggins, um sujeito que joga nas 11: é baterista de jazz, produtor de hip hop, dj e compositor. Riggins é de Detroit, terra de J Dilla, e ambos têm uma sonoridade semelhante — aquela interseção entre o jazz e o hip hop que a gente conhece bem. Riggins inclusive foi uma amizade muito importante para Dilla em seus últimos anos de vida.
Ambos colaboraram criativamente, normalmente com a assinatura de Riggins na produção dos álbuns de Dilla. Antes disso, Karriem Riggins era membro do trio de jazz do baixista Ray Brown, até que resolveu sair da banda e se tornar o bandleader da banda do queridinho do rap underground, Common.
Como baterista, Riggins já tocou com gente como Oscar Peterson, Norah Jones, Paul McCartney e Esperanza Spalding. Como produtor, já colaborou com músicos do quilate de Kanye West, Kaytranada, Slum Village, The Roots, Erykah Badu e Earl Sweatshirt.
“Alone together” é o disco de estreia do sujeito, mas impressiona a quantidade de influências, todas muito bem costuradas, e a voz própria construída por Riggins, ao longo das 34 faixas.
Se você às vezes se pergunta de onde saiu Kaytranada e Flying Lotus, convém escutar com carinho “Alone together”.
Imagine se na discussão “amor, você tá estranho” a pessoa realmente estivesse muito estranha
João Luis Jr.
Um traço comum entre alguns dos melhores filmes de horror é o fato de que eles conseguem oferecer a versão exacerbada de algum medo mundano que já existe na vida de muita gente. “A hora do pesadelo” transforma o desconforto do sonho ruim em um monstro mortal; “IT” leva o receio que muitos de nós temos de palhaços ao seu maior extremo possível; “A noite dos mortos-vivos” aborda esse medo um pouco mais politizado de que o capitalismo nos transforme a todos em zumbis.
E nessa lista de pequenos e grandes medos humanos, é óbvio que vários deles envolvem nossos relacionamentos românticos. O medo de se sentir desconectado do parceiro, o medo do desgaste da relação, até mesmo o medo de descobrir que a pessoa com quem você está não é o que ela parece ser. E é nesse espaço que trabalha “Significant Other” (bizarramente traduzido como “Uma obsessão desconhecida”, no Brasil), do duo de diretores e roteiristas Dan Berg e Robert Olsen.
Com praticamente apenas duas pessoas em cena, a namorada interpretada por Maika Monroe e o namorado Jake Lacy (que está pros papéis de namorado babaca como Pedro Pascal está para os papéis de pai solteiro), o que temos é a versão mais extremada possível de todos questionamentos do tipo “você tá esquisito, sabia?” ou “tá tudo bem ou aconteceu alguma coisa?”, numa trama que mistura terror e ficção científica, indo desde momentos de forte tensão psicológica até outros de absoluto e puro ridículo, culminando num final ao mesmo tempo brilhante e que só poderia ser escrito por alguém com graves problemas de autoestima.
Uma trama ágil, interessante e que não desperdiça seu tempo, com menos de uma hora e meia de duração, “Significant Other” é mais uma nessa leva de filmes de terror de alto conceito e baixo orçamento, que garante sim diversão mas pode te deixar com um certo medo do seu namorado/namorada por um certo tempo. Mas vai passar, tá tudo bem, ele/ela é assim mesmo.
Um mundo dividido
Arnaldo Branco
Outro dia indiquei uma série de animação do cartunista italiano Zerocalcare (pseudônimo de Michele Rech) e agora vou indicar outra. Não é culpa minha se a Netflix estreou mais uma (“Este mundo não vai me derrubar”, 2023) e a minha resenha de “Destaque na linha pontilhada” saiu com um atraso de alguns anos desde o seu lançamento. Pensando bem essa segunda parte é minha culpa sim.
Em “Este mundo…” os episódios são maiores (coisa de vinte e poucos minutos), a história é mais simples e reflete todo ativismo do autor. A trama: Zero relata em flashbacks e flashforwards — usando o artifício de um depoimento numa delegacia — sua participação em um protesto contra a expulsão de um grupo de refugiados que estão vivendo no subúrbio de Roma onde o autor reside.
E com um drama adicional: entre os manifestantes que querem a saída dos imigrantes e que está prestes a entrar em confronto físico com o grupo militante de Zero está Cesare, um velho amigo que voltou de uma clínica de reabilitação com ideias neonazistas.
A construção da amizade dos dois através dos anos até a separação causada pelo vício em drogas e pela dificuldade de Cesare se adaptar à vida adulta desemboca nesse clímax onde a confusão de seu antigo colega de aventuras acaba sendo símbolo de uma Itália (e de um mundo) dividido pela cultura do ódio e pela falta de comunicação.
Tudo isso com o humor veloz descrito na minha resenha anterior e com a participação do tatu gigante que faz a função de grilo falante de Zero, ou seja: sua consciência antropomórfica. Un capolavoro, consiglio vivamente.