Conforme solicitado #36
E aí, tudo bem com você?
Uma coisa bacana da ideia de newsletter é que ela representa um exemplo bem específico de uma coisa cada vez mais rara: um email legal.
Sim, um e-mail bacana, um e-mail descontraído, um e-mail que não vai avacalhar o seu dia. Porque não é um email de trabalho, não é um email de cobrança, não é um spam, ainda que às vezes possa ter caído na sua caixa de promoções, a gente sabe que isso acontece. Não é um email urgente, porque você pode abrir a hora que quiser, quando se sentir relaxado, quando estiver legal, não precisa ser agora, a gente espera, tá suave. Não é uma cobrança, aqui a gente não te cobra, a gente só te apoia, você vai conseguir, você é legal, vem cá, me deixa te dar um abraço, pode encostar a cabeça no ombro sim, é abraço de verdade. E também não é um email de propaganda, ainda que claro, a gente tenha os nossos planos de assinatura, 15 reais por mês, mais barato que comprar uma ilha, uma ogiva nuclear, um clube de futebol ao lado de outro ator pra que façam uma série sobre vocês dois.
Então, como dizem os emails, a gente espera que essa newsletter te encontre bem e que, depois de ter lido os nossos textos, você se sinta melhor ainda. Ou apenas não se sinta pior. Já é alguma coisa, né?
E hoje temos uma programação muito que especial, com Arnaldo falando sobre como nossa querida mídia vem tratando os 100 primeiros dias do governo Lula, João discutindo como nem todas as coisas nesse mundo são feitas pra gente e Gabriel num gostoso e emocionado tour culinário pelos restaurantes mais importantes do RJ. Além disso, também tem cartum e também tem dica. Pode vir, pode confiar, se achar que vai tropeçar avisa que a gente te segura.
Cem anos em cem dias
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Semana passada a imprensa publicou sua tradicional análise dos cem primeiros dias do governo eleito, o que sempre me pareceu um recorte de tempo esquisito pra fazer esse tipo de coisa, como tentar avaliar um jogo de futebol pelos primeiríssimos minutos de bola rolando. Ainda mais se as substituições fossem todas feitas nesses minutos e não ao longo de toda a partida, como costuma acontecer — se não ficou claro tô falando da posse dos ministros, sou ansioso na hora de explicar minhas analogias.
Quem imaginou que depois de cair no golpe do ministério técnico do governo Bolsonaro nossa imprensa ia ser um pouco mais moderada na hora de apostar contra o Lula não conhece sua capacidade brutal de produzir antipetismo até nas condições mais adversas. Uma galera que analisou os três primeiros meses do ex-presidente com a placidez de quem estava fazendo a resenha de um vinho razoável agora parece o Datena berrando por mais ação das autoridades para acabar com a desordem e o caos social. É meio como se alguém com a mesma falta de critério do Fábio Jr. pra escolher noiva de repente exibisse níveis de exigência dignos de um príncipe herdeiro.
A Dora Kramer, por exemplo, escreveu que os primeiros dias do novo governo foram marcados por confusões, desacertos e retrocesso, coisas que também marcaram os três primeiros meses do governo anterior, além dos quarenta e cinco seguintes. Mas nessa época ela estava mais preocupada com o fato do Bolsonaro não reagir quando o Olavo de Carvalho, que ainda não havia nos dado o prazer do seu falecimento, xingava membros do seu ministério.
Aí quando você vai ler o artigo percebe que tudo que ela chama de confusão, desacerto e retrocesso são exatamente os motivos pelos quais a maioria da população cravou treze no ano passado. E que tudo que a colunista gostaria que o Lula fizesse seria continuar fazendo exatamente as mesmas coisas que o Bolsonaro, embora fingindo que não curte (mais) o ex-presidente.
Nisso ela se iguala aos bolsonaristas remanescentes: toda vez que um deles posta ironicamente a frase “faz o L” vou lá conferir qual foi o direito que eu ganhei.
Isso não é ruim, isso apenas não é pra você
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
O ser humano experimenta o mundo em primeira pessoa. Vemos tudo pela nossa perspectiva, só enxergamos através dos nossos próprios olhos, e com isso nos sentimos parte de uma narrativa onde somos protagonistas, numa espécie de modelo “eucêntrico” em que existe a tentação de imaginar que tudo gira ao nosso redor e as coisas funcionam basicamente em relação a nós mesmos, mais ou menos como os bebês que acreditam que se eles não estão vendo mais um objeto é porque ele deixou de existir.
Isso obviamente cria alguns desvios de percepção, já que não apenas se você é um protagonista todo mundo tende a parecer coadjuvante (ou figurante), como uma visão muito central de si mesmo em relação ao universo gera uma certa dificuldade de entender que, bem, certas coisas não tem nada a ver com você.
E ainda que isso leve a distorções um tanto quanto graves em diversos aspectos da vida – a pessoa que se vê como um indivíduo complexo que tem justificativas racionais para todos os próprios vacilos enquanto os outros são apenas arrombados que vacilam de sacanagem – uma das questões mais peculiares e curiosas acaba sendo a da pessoa que acredita sinceramente que todo e qualquer produto cultural que não é criado pensando nela ou não atende os padrões que ela estabelece é necessariamente ruim.
É o nerd velho que reclama de “Super Mario”, a animação pra crianças, porque ela é muito infantil; é a pessoa que assiste 30 segundos de um clipe de Kpop e fala que “aquilo não é música de verdade” porque não entendeu o que estava acontecendo; é o Felipe Neto de óculos escuros, aos 25 anos, falando que “Crepúsculo”, uma obra destinada majoritariamente para mulheres jovens, não estava de acordo com o que ele esperava que fosse um filme de vampiro e portanto era uma coisa terrível.
Não que todas essas coisas sejam necessariamente excelentes ou incríveis – obviamente cada pessoa tem direito a ter sua opinião e nem todos têm o mesmo fascínio pelo Chefe Swan e sua incrível jornada sendo a última pessoa em Forks a descobrir que vampiros existem enquanto tem um deles literalmente flutuando no teto da casa dele – mas existe algo de inegavelmente engraçado em ver uma pessoa rejeitando algo que nunca foi destinado a ela em primeiro lugar.
E daí surgem também reações como “não sei o que vocês veem na coisa x” (como se a pessoa fosse da polícia do gosto e você agora tivesse que apresentar uma justificativa em três vias reconhecida em cartório pra gostar de alguma coisa) ou “será que só eu não gosto da coisa y?” (uma tentativa um tanto quanto desesperada de parecer especial num mundo tão hostil e contrarianista que sabemos que, se Jesus voltar e sair curando doentes alguém vai dizer “lá vem o cabeludo querendo aparecer e tirando emprego dos médicos”), tão comuns em qualquer rede social e que muitas vezes são emitidas por pessoas que os criadores da coisa x ou y realmente jamais pensaram em atingir.
Então ainda que gosto sempre seja pessoal e o direito à opinião seja soberano e inalienável – por mais complicado que possa ser ler certas coisas – às vezes vale a pena uma reflexão leve sobre o fato de estarmos diante de uma coisa realizada de maneira precária e com resultados lamentáveis ou se apenas somos uma pessoa no Largo do Machado abrindo um mangá japonês e falando que é horrível porque as páginas tão todas ao contrário e não tem palavra, tem só tracinho. Pode até ser complicado entender ou admitir, mas nem tudo é feito pensando em você.
Papo diagonal
Arnaldo Branco
No Rio de Janeiro não se come mal (primeira parte)
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
A coluna de hoje é uma enumeração, é um apanhado, de bares e restaurantes afetivos e muito importantes, diria fundamentais, na minha formação como brasileiro e carioca. Se você é como eu e acredita que um bar pode ser, assim, se a gente quiser falar pomposamente, uma experiência formativa tanto quanto a literatura ou o cinema, vem comigo. A lista a seguir não tá organizada segundo qualquer ordem ou critério lógico, a bicha é bem aleatória mermo, demorou?
Essa daí é a primeira parte, semana que vem tem a segunda e última. Muitas amigas e amigos me pedem esse negócio há coisa de anos: tá aí o que vocês queriam. O critério não foi brincar de hipster, e indicar coisas obscuras pelo simples esnobismo do you probably never heard about. Daí se tem um monte de lugar listado que pode soar como clichê pra ti, meu Moacyr Luz, é porque me pareceram incontornáveis — de acordo com a minha trajetória e a minha sensibilidade, claro. Como tudo na minha vida, o critério é só o afeto. Partiu, família.
Casa Paladino
Meu bar favorito da vida, que eu inclusive já recomendei aqui na CS. Frequento desde a minha infância, na década de 1980, quando meu pai me levou e me apresentou ao sanduíche triplo – pão francês crocante, provolone, ovo e copa. Há a opção de pedir o “triplo no prato”, sem o pão, que também é excelente. As omeletes são fantásticas. Prove a de sardinha nacional e regue com cebola e salsinha.
Quick Galetos e Galeto Diplomata
Muito se fala do Sat’s, tem até gente que tatua etc., mas o Quick Galetos é que é o brabo — apesar de ser uma pequena jóia escondida em Copacabana, é um restaurante pouco falado, na altura da Duvivier. Jamais agradecerei o suficiente ao amigo Venetiglio, o responsável por me indicar essa belezura, há sei lá quantos anos.
O Quick tem, é claro, um galeto maravilhoso, mas se puder coma também o contrafilé deles, porque é brutal. A farofa à brasileira é top 3 farofas da cidade – as outras duas estão nessa lista, GLAD U ASK: a de banana da Majórica e a de ovos do Poleiro do Galeto, na CADEG.
Já o Galeto Diplomata fica no Centro da cidade (na Av. Graça Aranha), tem um arroz com brócolis excelente e uma maionese de batata e cenoura melhor do que a da vovó. Além disso, é praticamente um fast food de galeto, no sentido de que as refeições são servidas beeeeem rapidamente, coisa linda demais. Especial atenção para a logo: com um galeto, ora ora, diplomata — de cartola, monóculo, o diabo.
Bar do Serginho
O Bar do Serginho, em Santa Teresa, perto do Largo do Curvelo, é um dos meus favoritos. Em primeiro lugar, pela localização: estou aqui me segurando para não escrever bucólico, mas o cenário é sim bucólico, fazer o quê? Além disso, eles têm uma pizza bem honesta e uma tábua de frios incrível.
E o melhor: tudo por um preço pra lá de justo e razoável. O único problema é que o bar abre e fecha mais ou menos segundo a cabeça do dono – isto é, totalmente no shuffle. Mas isso não é exatamente um problema, porque se você colar lá um dia e o bar estiver fechado, o que não falta é boteco bom e opções mil.
Massas Pane & Vino
A Pane & Vino é a proverbial “portinha que você não dá nada”, na Conde de Bonfim, Tijuca. Morei muitos anos na Tijuca, toda a família da minha mãe é de lá, e o tanto de amor que eu tenho por esse bairro não tá no gibi. Adaptando o saudoso mestre Monarco: “Se for falar da Tijuca, hoje eu não vou terminar”.
Mas o que eu queria dizer é que a Pane & Vino tem os melhores salgados da cidade. Ponto. As empadas são um espetáculo (camarão, queijo, frango) e o empadão, para levar para casa, salva um casamento. O calzone é absurdo, o risole de camarão e, pela misericórdia do Menino Jesus, a coxinha de frango com catupiry.
Sei que alguns torcem o nariz para o catupiry, o que definitivamente não é o caso aqui. Sou sim um membro orgulhoso da Tropa dos Catupiloukos – loucos por catupiry. Aqui é CATUPIGANG, magrão, e se não curtes, you can't sit with us, coisa e tal.
Bar do Jóia
O Bar do Jóia foi o meu pai quem me apresentou, em uma ruazinha escondida no Centro, perto da Marechal Floriano, e portanto do Paladino. Cheguei a conhecer o Jóia, português gente boníssima e botafoguense doente, que tocava o bar com sua esposa e filhas.
Infelizmente o Jóia já faleceu, mas o lugar continua de pé e sendo tratado com todo o carinho e exímia competência pelas mulheres da família. O negócio é o seguinte: peça o paio com feijão. Esse é o carro-chefe do lugar. E, sim, o nome do prato é esse, e não o contrário: feijão com paio.
Um paio inteiro é servido boiando em um feijão ridiculamente bem temperado. Tão bem temperado que dá até raiva. Acompanha farofinha delícia, couve e mais alguma coisa mara que infelizmente não estou me lembrando. Mas bota a cara e depois me agradece.
Adega Portugália
Então, não vou mentir, né. A Adega Portugália é ruim. É um restaurante bem safado, nada demais naquele negócio. Exceto o bolinho de bacalhau. O bolinho de bacalhau é absurdo. Peça e seja feliz. Mas se certifique de que a porção foi frita na hora.
Poleiro do Galeto
O poleiro do galeto não tem galeto, o carro-chefe é o contrafilé acebolado AND a farofa. Sério, a farofa deles é absurda. A dica do Poleiro eu peguei com um bróder taxista – a propósito, uma classe profissional que invariavelmente dá excelentes dicas de onde comer.
O Poleiro do Galeto quase sempre tem uma fila absurda, mas também com aquele custo-benefício não tinha como ser diferente, né, pai. Mas esse é o único senão. Tira algum dia para almoçar lá e depois aproveita e dá um rolê pela CADEG, um dos melhores lugares da cidade.
Armazém Cardosão
Morei uns bons anos praticamente ao lado do Cardosão, em Laranjeiras, até onde sei o único colégio eleitoral no qual o Bolsonaro não ganhou em 2018, no Rio de Janeiro. O Cardosão é um lugar em que dependendo do dia você encontra samba, jazz e até bloco de carnaval.
O atendimento no geral é meio zoado e caótico, mas se isso te incomoda você deveria estar lendo dicas gastronômicas sobre o Itaim Bibi, me desculpe. O Armazém Cardosão teve uma importância muito grande pra mim, durante o auge da pandemia, porque em algum momento eu entendi que o que mais me fodia a cabeça era a percepção de que os dias da semana eram indistintos.
Daí a ideia de começar a ritualizar as coisas: toda sexta-feira, depois das 17h, eu abria uma cerveja, num gostoso sextou bem normcore. Nessa onda comecei a pedir a feijoada do Cardosão no almoço de todo sábado. Para, é claro, marcar que era sábado e tal.
Se não é a melhor feijoada da cidade, é fácil uma das. Tem duas versões: a com carnes magras e a com carnes gordas. Não preciso dizer com qual delas você vai ser mais feliz. Olha bem pra minha cara.
Casa Cavé e Confeitaria Manon
Muita gente fala da Confeitaria Colombo, que até vale a ida pela beleza e a importância histórica, mas o negócio à vera é a Casa Cavé. Mete bronca nos bem-casados, no misto com torrada petrópolis e no croquete de carne — que, graças a Deus e aos orixás, não é aquele do tipo alemão, mas sim o com carninha moída, pique vovó.
Tem a Confeitaria Manon também, que tem um chocolate gelado incrível e um doce chamado MADRILENHO, que eu não vou nem me dar ao trabalho de descrever, mas apenas deixo a sugestão: vai lá e depois me fala.
Bar Brasil
O Bar Brasil é aquele restaurante que, com alguma folga, você poderia dizer que é de comida alemã. Ou de como um brasileiro pensa ou imagina que é uma comida alemã – o que é muito melhor, cá pra nós.
Gosto da geladeira com porta de madeira deles; do patê com cestinha de pães; do bolo de carne e especialmente do mix de salsichas. O Bar Brasil na minha cabeça e coração está sempre associado ao carnaval de rua.
Tem sempre aquele momento em que eu, minha mulher, e amigos e amigas nos olhamos, no meio do calor e do delírio dos blocos, e falamos “Já deu, né? Bora comer?”.
Nova Capela
O Nova Capela é do lado ao Bar Brasil, é mais falado que o Bar Brasil, mas cai igualmente na categoria de “restaurante de velho” — categoria que amamos. Há coisa de poucos anos ia quebrar, ou tava quase quebrando, até que, salvo engano, o dono do Belmonte comprou e salvou o lugar.
Diferentemente do que ele fez com o Cervantes, que foi absolutamente descaracterizado e transformado em um híbrido de Belmonte com sei lá o quê, o Nova Capela permanece com a mesma cara e a cozinha de sempre.
O prato clássico e o mais pedido é o cabrito, macio e suculento como deve ser, com arroz de brócolis e batatas cozidas. Não tem erro. De entrada, peça uma porção de pastéis de cabrito. INCEPTION de cabrito sim, vai por mim.
Caneco Gelado do Mário
Em 2020, pouco antes de começar a pandemia, estive pela primeira vez em Lisboa. Cheguei ansioso para ver e conhecer um monte de coisas, mas a minha missão principal era descobrir se havia lá algum bolinho de bacalhau melhor do que o do Mário, em Niterói. A resposta curta é: não, não há.
Cresci escutando a fama do lugar através do pai de amigos queridos, um professor aposentado da UFF, que frequentava a birosca/restaurante e a cantava em verso e prosa. O Mário é um coroa português que, sempre que possível, se envolve pessoalmente na confecção cuidadosa dos bolinhos – cuja massa é manuseada apenas com colheres e jamais com as mãos.
O porquê disso deve ter a ver com alguma explicação física ou química sobre transmissão de calor, ponto da massa, mas ninguém aqui quer entrar nesses particulares, né. O que você precisa saber é que a proporção bacalhau/batata é perfeita e que o bolinho de bacalhau do Mário é realmente de outro mundo.
Você pode tanto tomar uma cerveja no balcão e petiscar umas baguncinhas ou entrar no amplo salão e pedir uma refeição mais regada. Se for esse o caso, vai de cherne à moda — confia no pai. O Caneco Gelado do Mário fica bem no centro de Niterói, pertinho das barcas e do terminal rodoviário. Não tem erro.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
“Um homem / bateu em minha porta / e eu aaaabriiiii”
Gabriel Trigueiro
Semana passada assisti com minha mulher ao mais recente do M. Night Shyamalan: “Batem à Porta” (Knock at the Cabin). Aconteceu com o Shyamalan algo parecido com o que aconteceu com os Los Hermanos. Tenho idade suficiente para lembrar do momento em que LH gozava de prestígio da crítica e sucesso absurdo de público.
Daí, quase que da noite pro dia, uma galera reagiu a esse consenso e hegemonia e começou a odiar com muita força e em alto e bom som os sujeitos e a criar uma identidade pública a partir disso.
Teve até a galera que vibrou com o soco lá do Chorão, mas que não aguenta cinco minutinhos de trocação com ninguém. Bagulho meio triste ter que terceirizar fanfarronice de macho, mas cada um com seu kink.
Mas eu dizia, Shyamalan é um diretor competente, com um ou outro momento de gênio, mas que ao longo dos anos foi sendo desproporcionalmente vilipendiado, escrotizado e tratado como um sujeito meio cafonão por muitos cinéfilos.
Assim, primeiro que cinéfilo nem é gente, e segundo que essa é uma avaliação injusta. E, diante de uma avaliação injusta, formou-se um fandom de, sei lá, shyamalaners que estão dispostos a elogiar e a passar pano para absolutamente qualquer coisa que o cabra faça. Mas, de novo, cada um com seu kink.
O fato é que em “Batem à Porta” eu mesmo fiquei totalmente shyamalaner das ideia: aqui temos o sujeito no seu melhor – controle narrativo, do ritmo das cenas e da estória que é contada, absurdo e sem igual.
Um dos motivos pelos quais Shyamalan é injustamente tratado como cafona é porque a nossa sensibilidade irônica, cínica e pós-moderna lida com deboche diante de qualquer tratamento de fábula e de encantamento com o mundo contemporâneo.
O olho do sujeito, nesse sentido, é um pouco como o do Hayao Miyazaki, no sentido de que é alguém que tem uma visão quase infantil do mundo – na melhor acepção da coisa: é inocente, não é boba. As alegorias estão a serviço sempre de algo transcendente e filosoficamente maior do que nós mesmos.
“Batem à Porta” é uma grande alegoria bíblica e, de certa forma, termina com uma mensagem no mínimo politicamente pessimista e quase conservadora. Todavia, como dirige bem o filho da puta.
Não sei bem como te convencer a ouvir algo que vai te deixar bem puto
João Luis Jr
Um conceito que eu sempre achei que não era muito eficiente na hora de vender ou divulgar uma coisa é a “comparação com alguma forma de violência”. Fala que tal filme é um “tapa na cara” ou que tal disco é “uma porrada” sempre me pareceu uma forma muito peculiar de tentar me convencer a fazer alguma coisa, já que eu, pessoalmente, já levei tapas na cara, já levei porrada, e nenhuma dessas experiências foi exatamente positiva ou enriquecedora num nível pessoal, então não sei se eu iria querer dedicar duas horas do meu dia a um filme que fosse o equivalente a quando um policial me deu um tapaço durante uma geral na frente do Maracanã. Não foi legal, não foi bacana, não vou recomendar “abordagem da PM na saída do estádio” aqui na Conforme.
Mas é um pouco complicado descrever um podcast como o “Projeto Querino”, que aborda a história do Brasil através da história da população preta, sem mencionar que, da mesma maneira que ele oferece informação rica, com diversas entrevistas, muita pesquisa, e uma produção impecável, ele também vai te desgraçar a cabeça nos mais diversos níveis, com o quanto a história do nosso país é injusta, suja e construída em cima do trabalho de uma população que sofreu os mais absurdos abusos desde a sua chegada e ainda hoje luta contra um projeto sistemático de extermínio por parte do poder público e das lideranças brancas que estão no poder.
Então sim, preciso admitir que o “Projeto Querino”, idealizado e apresentado pelo jornalista Tiago Rogero é, em vários níveis, um “soco na boca do estômago”. Mas ao menos pra mim, serviu muito menos pra derrubar e muito mais pra acordar em relação a diversas coisas sobre a história do meu país e a história do grupo do qual eu faço parte das quais eu não tinha a exata dimensão ou preferia não pensar pra não ficar triste demais. Porque ainda que tomar uma porrada não seja o ideal, às vezes é sim o que você precisa pra conseguir perceber que está numa briga e se preparar pra revidar da maneira certa.
No regrets
Arnaldo Branco
Finalmente decidi voltar a assinar o Mubi, canal de streaming que já tinha experimentado antes e que cancelei porque me dava ansiedade, com seu sistema de rodízio de ótimos filmes empilhados em uma janela de um mês: as coisas que eu queria ver iam se acumulando, eu tentando abrir espaço na agenda de trabalho e só vendo a contagem regressiva praquele Melville ficar indisponível: 8 dias, 7 dias, 6…
Mas aí me disseram que agora não é bem assim; que certos filmes ficam bem mais do que trinta dias no catálogo, e voltei a explorar os títulos. Foi assim que vi o documentário “Scott Walker: 30 century man” (2006), que estava querendo conferir desde que descobri o cantor poucos anos atrás, apesar do cara ter começado sua jornada no início dos anos sessenta e até já ter morrido (em 2019), pra aumentar minha vergonha de retardatário.
A produção desse americano que fez boa parte de sua carreira na Inglaterra — primeiro com os Walker Brothers, que não eram irmãos e não se chamavam Walker; o nome verdadeiro de Scott era Noel Scott Engel — é impressionante. Os arranjos das suas músicas são complexos e urgentes, sua voz grave é inconfundível e suas letras dão uma sensação de profundidade mesmo quando parecem apenas uma brincadeira com palavras. Sua trajetória também é fascinante, tendo começado em uma proto-boy band e terminado como um artista experimental que gravava percussão dando socos em enormes pedaços de costela bovina.
Para adicionar mistério à excelência, o cara era um recluso que sabotou sua carreira de várias maneiras mas mesmo assim não conseguiu fugir da idolatria de quem conseguiu descobrir seu trabalho nos escombros da indiferença da indústria. E quem o idolatrava? David Bowie, Johnny Marr, Jarvis Cocker. O músico dos músicos.