Conforme solicitado #32
Tempos desinteressantes
Chegamos à Conforme Solicitado #32, um numeral sem maior destaque na História a não ser por ter ornado a camisa do Magic Johnson. Combina com essa última semana, onde o maior transtorno do governo Lula foi uma live da Janja na TV Brasil, emissora que na administração anterior parecia uma enorme transmissão do Troféu Imprensa com o Bolsonaro no lugar do Sílvio Santos.
Já que falta assunto a gente queria aproveitar para agradecer a todo mundo que passou a colaborar com uma graninha pra nossa newsletter mesmo sem ter conteúdo exclusivo. Vocês são os abnegados que pensam no coletivo e nunca diriam uma burrice do tipo imposto é roubo. Quem quiser entrar para esse clube de mecenas anônimos porém lindos é só escolher um dos nossos planos: tem de 15 reais por mês, de 150 por ano e de 250 por puro desejo de nos fazer felizes. Esse parágrafo é um tanto oportunista mas como dizia o Seu Bicalho da Escolinha do Professor Raimundo — representado pelo grande ator Antônio Pedro, que nos deixou recentemente — pelo menos fiz o meu comercial.
Nesse número Arnaldo fala sobre a implicância dos comediantes com o uso de pronome neutro, João discorre sobre falsa intensidade na internet e Gabriel vem com uma crítica sobre o último especial de comédia do Chris Rock. Como a gente falou no primeiro parágrafo, as coisas estão beeeem mais calmas no Brasil.
Tem aquela famosa maldição árabe: “que você viva em tempos interessantes”, querendo dizer em tempos de horrível turbulência política, econômica e social. Pois a gente tá feliz demais em poder discutir se “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” merece sete Oscars e se o Pedro Pascal é mesmo o homem mais bonito do mundo ou se — como alguém disse no twitter — na verdade parece o Evandro Mesquita fazendo o papel de Paulão da Regulagem.
Buuu!
Arnaldo Branco
Lembrando que os assinantes dos nossos planos pagos dessa primeira leva ainda concorrem a um cartum original do Arnaldo, esse.
Pronomes
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Gosto de alguns comediantes de stand-up, mas costumo acompanhar com um pé atrás. Por atribuição do ofício eles precisam ser implicantes e é por isso que via de regra começam sua rotina com a frase “não é engraçado que…” seguida de algo que nem sempre é engraçado e que muitas vezes revela a falta de jeito do cara para lidar com qualquer pequeno contratempo da vida.
Por isso é claro que muitos desses profissionais do riso elegeram como bola da vez uma coisa tão banal como o uso da linguagem neutra. A gente espera esse tipo de atitude de deputados do MBL, empenhados em convencer seu eleitores de que depois de serem obrigados a usar o tratamento “elu” o próximo passo será a criação de cirurgias compulsórias de mudança de sexo. Mas caras que ganham a vida para comentar assuntos correntes podem gastar um pouco mais de tempo pensando se aquilo que identificam como problemático de fato é.
Mudar um pronome a pedido de um interlocutor não deveria ser considerado algo sobrenatural nos dias de hoje, quando pessoas adotam o nick que usam nas redes sociais na hora de se apresentar ou empregam anglicismos não apenas horrendos como desnecessários — em nossa sociedade vivem impunemente caras que falam “schedular” (pronuncia-se esquedular) em vez do mais simples (e pré-existente) agendar.
Alguns desses humoristas atravessam a linha e revelam o que há por trás desse súbito purismo linguístico: a transfobia, estendendo a piada do campo da semântica para o da liberdade de fazer o que se quer com a própria vida e o próprio corpo. Mas para aqueles que se limitam a manifestar incômodo em escrever um X no lugar de uma vogal eu estou dando o benefício da dúvida.
Mas se é realmente apenas uma questão de tratar a Gramática como se fosse a Constituição, lembro da frase do Verissimo: a língua precisa apanhar todo dia para aprender quem é que manda.
Chris Rock tem 99 problemas, mas Will Smith é o principal
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
É mais ou menos incontestável o fato de que Chris Rock é um dos maiores comediantes de sua geração. "Indignação Seletiva”, seu mais recente especial de comédia para a Netflix, é, no entanto, um exercício preguiçoso e displicente de verborragia boba que começa de lugar algum e vai até lugar nenhum.
A ideia central de "Indignação Seletiva” é o argumento de que o que irrita Rock não é propriamente aquilo que chamam de “cultura woke”, ou pautas de esquerda, mas sim a aplicação de dois pesos e duas medidas e a afetação de uma postura de indignação moral distinta para casos semelhantes.
"Indignação Seletiva” é a resposta tardia ao tapa na cara que ele tomou de Will Smith, durante a cerimônia do Oscar do ano passado. Aliás, esse é o primeiro elemento que me irritou nesse negócio todo: fucking capitalismo.
A capacidade da Netflix de comodificar sem qualquer cerimônia um episódio de agressão entre dois homens negros e de criar barulho, hype e de transformar esse troço em um show de menestrel – um espetáculo de entretenimento duvidoso, produzido por uma indústria cultural historicamente racista, destinado a uma audiência majoritariamente branca, é um sinal incontestável de degeneração cultural e das formas sofisticadas e complexas que o racismo pode assumir no mundo contemporâneo.
O negócio é o seguinte, eu tenho limites até bem elásticos para o humor. Não acho que para a piada ser engraçada ela necessariamente tem que ser punch up (ou “rir do opressor”, em bom português), nem nada parecido com isso, imagina.
Mas, assim, na moral, se a sua comédia é basicamente humor observacional, se o bagulho é todo estruturado como um cronismo social, é bom que você me entregue uma piada engraçada. Você tem apenas um trabalho, vai, não é difícil.
Porque senão o negócio vira comentário de taxista reaça. Ou pior, de um Rafinha Bastos ou até de um Danilo Gentili. A raiva pode ser, e com frequência é, a matéria prima para um bom material cômico. Mas até se tornar um bom material cômico, é preciso uma elaboração cuidadosa e uma lapidação de ourives.
Normalmente Chris Rock é esse sujeito: escreve admiravelmente bem, tem uma baita capacidade retórica, e consegue desenvolver argumentos complexos de formas enganosamente simples, que é invejável, e um rigor parnasiano com o texto que só tem comparação talvez com Jerry Seinfeld.
Mas em "Indignação Seletiva” esse Chris Rock não aparece. O que vemos é apenas um sujeito raivoso, raramente engraçado, desastrado (ele chega a errar a entrega de uma piada) e que convenientemente distorce premissas e a própria realidade das coisas porque tudo ali está a serviço de apenas um troço: ele quer o sangue não apenas do Will Smith, mas, e aqui a coisa toda fica ainda mais estranha e desconfortável, da Jada Pinkett Smith.
Então, assim, claro que o meu argumento aqui não é cobrar de Rock um compromisso com a verdade, o sujeito não é jornalista nem nada, eu sei. Também compreendo que, como comediante, ele tem todo o direito a uma certa licença poética.
O problema é que a licença poética, na forma por exemplo de distorções e descontextualizações das suas falas, deveria idealmente ser uma espécie de trampolim para um salto ornamental perfeito, aka a piada perfeita.
Mas quando você cansa de aguardar, mas jamais vem essa piada, o que nos resta é só cronismo social ruim e uma comédia observacional preguiçosa e cansada.
Aqui e acolá a gente lembra o porquê do sujeito ter o tamanho que ele tem. Por exemplo, quando ele debocha da surpresa da Meghan Markle ao saber que a família real britânica, “the Sugarhill Gang of racism” é, ora ora, racista. Timing, ritmo, texto, tudo ali é perfeito. Mas no geral não há engenho, inventividade e nada que justifique o buzz diante desse especial.
A Roxane Gay escreveu um excelente texto a respeito, no NYT. Dá uma olhadela lá, porque o argumento é impecável e, creio, irrespondível. Assim como ela, saí de "Indignação Seletiva” com um gosto ruim na boca.
Ao longo de mais ou menos uma hora um sujeito brilhante e talentoso se apequena, se barateia, e promove uma política de respeitabilidade boba, além de pataquadas classistas e gratuitamente misóginas.
Da próxima vez é mais fácil a Netflix dar logo um especial de comédia pro Clarence Thomas ou pro Fernando Holiday. Ao menos me poupa um tempo que eu poderia gastar assistindo a, sei lá, “Soltos em Salvador”. Vivendo e aprendendo, família.
A morte da moderação na era da hiper-contundência
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
É praticamente da natureza humana ter muitas opiniões sobre tudo o tempo todo. Você experimenta um prato e seu paladar gera uma avaliação sobre ser gostoso ou não; você vê um filme e espontaneamente surge uma percepção sobre o quão divertido ele é; você conhece uma pessoa e, quer você se sinta confortável para falar isso em voz alta na frente de um parente dela ou não, sua mente vai analisar como você se sente em relação a ela. Num mundo de experiências complexas e surpresas diárias, nada mais natural do que ir mentalmente catalogando situações para referências futuras (“comeria isso de novo”, “filme chato do caralho”, “seu tio foi mais legal comigo do que os meus são”).
O que talvez seja um pouco menos natural, provavelmente, é o espaço que passamos a ter para emitir opiniões e o alcance que essas opiniões foram ganhando com o tempo. Você não gostou de um restaurante? Agora você pode fazer uma avaliação pública para influenciar outras pessoas que estão indecisas sobre comer lá ou não. Você não gostou de um filme? Existem redes sociais só para que você fale sobre isso. Você tem um problema com alguém? Nada como uma thread no Twitter para que você possa realizar uma longa indireta, que provavelmente irá atingir umas 5 pessoas, ainda que nenhuma delas seja a que você tinha o problema em primeiro lugar.
Só que numa era de redes sociais, excesso de informação e busca de validação através de likes, é óbvio que não basta ter canais para expressar sua opinião, é preciso que ela se destaque, é preciso que ela chame atenção, é preciso que ela atinja o máximo de pessoas possível. E qual seria a maneira mais eficiente de fazer isso?
A primeira, obviamente, é chamar a atenção através do absurdo. O comentarista esportivo que fala que Pelé não é isso tudo, o tuiteiro não tão bonito que fala que o Pedro Pascal é feio, a pessoa que no dia da morte do artista conclui que é a hora de listar todos os motivos pelos quais considera ele “superestimado”. Num ambiente virtual pós-carolconkiano, que abraça cada vez mais a lógica do “fale mal mas fale de mim” e que acredita que não existe atenção ruim, ruim é não chamar atenção, ser bizarro, sem sentido ou apenas desagradável é sim uma estratégia de sucesso, como comprovado pelo fato de que Jair Bolsonaro, um idoso fascista que mentia o dia todo, tinha mais atenção de todos os setores do Twitter do que Drauzio Varela, um idoso gente boa que queria evitar que a gente ficasse doente.
A segunda, e que parece ter se tornado a linguagem corrente de todas as redes sociais, é a de manifestar uma opinião que está sim dentro do escopo do normal, mas de uma maneira tão exagerada e intensa que, mesmo incluída no senso comum, ela acaba chamando atenção. Dizer que tal série é boa? Pouco, tem que dizer que ela é a melhor coisa que já aconteceu na história da raça humana e que quem não assiste não deveria ter acesso a internet. Dizer que tal filme é ruim? Fraco, normal, qualquer um faz. Dizer que o filme é horrendo e que qualquer pessoa que gosta dele é um otário que merece apanhar na rua? Agora sim alguém vai dar RT comentado, vai gerar debate, com sorte você pauta um dia todo do Twitter.
Porque se a opinião sempre existiu como ferramenta de expressão e influência, hoje ela funciona, em grande parte, como instrumento de performance, sem uma necessária relação com o sentimento real da pessoa. Pra chamar atenção qualquer simpatia vira amor, pra se destacar qualquer desagrado vira ódio e numa época em que ficamos um tanto quanto anestesiados pra cada vez mais coisas, apenas o extremo do extremo se torna realmente capaz de causar alguma reação.
E com isso termino minha análise do chocolate Bis sabor laranja concluindo que ele é sim pior do que crimes de guerra e quem consome deveria ser preso. Conto com vocês aqui semana que vem para discutir comigo o milho de pipoca da marca “Chinesinho”.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Quincy Jones, jogador caro
Gabriel Trigueiro
Fala comigo, tropinha. A dica de hoje é The Dude, um álbum de estúdio de 1981, do GOAT Quincy Jones, o brabo. The Dude em tese é um disco solo todo produzido e arranjado por Jones, mas na real é um projeto colaborativo cheio de pesos pesados. Tou falando de gente como Michael Jackson, um ano antes de entrar em estúdio com Quincy Jones para gravar Thriller, o álbum pop perfeito; Herbie Hancock, dois anos antes de gravar seu álbum de electro-funk Future Shock, um disco tão importante para o nascimento do rap; e, para não ficar enumerando aqui mil nomes, Stevie Wonder, o famoso “dispensa apresentações”.
The Dude tem jazz, música eletrônica, pós-disco, R&B e até “Velas”, composição de Ivan Lins e Vitor Martins. Papa finíssima.
Conheci The Dude porque uma de suas faixas, “One Hundred Ways”, foi sampleada por um de meus heróis, MF DOOM, em “Rhymes Like Dimes”, no seu disco de estreia Operation: Doomsday.
The Dude é lindão demais, James Ingram e Patti Austin se revezam nos vocais e o universo sonoro conjugado pelos arranjos e produção de Jones é complexo, absolutamente sofisticado, mas soa enganosamente simples: como um chicletinho pop que toca na JB FM enquanto você volta de táxi meio ébrio na madrugada, depois de aprontar alguma baguncinha pela cidade. Vale quanto pesa.
Desagregação
Arnaldo Branco
Na edição passada falei sobre como estava pensando em tentar me desligar das novidades que todo mundo está assistindo ou coisas que o algoritmo acha que eu gostaria de ver — até agora o aproveitamento dele tá muito meia boca, por sinal. Estava me sentindo como os clientes da locadora onde fui balconista — escrevi sobre esse tempo aqui — que insistiam em ir direto na prateleira de lançamentos mesmo que não tivessem visto alguns dos filmes mais antigos e geralmente muito melhores disponíveis nas outras seções. Sorte deles que eu só queria ganhar o meu salário e não bancar o Tarantino.
Mas acho que exagerei: vou falar sobre uma minissérie que só foi exibida uma vez, na Rede Globo — em 1989 — e que não está disponível em nenhuma plataforma; a gente vai praticamente ter que fazer uma campanha pro Cedoc liberar o material se alguém se interessar em ver. E para escrever sobre ela ainda vou ter que contar com a minha memória, que falha mais do que uma impressora comum em um momento de emergência.
A verdade é que nunca superei o impacto de “Sampa”, escrita pelo Gianfrancesco Guarnieri e dirigida por Roberto Talma, e que na época me deu a impressão de ser uma excelente adaptação de um romance psicológico, embora tenha descoberto agora, conferindo a ficha técnica, que se tratava de um roteiro original.
A história se passava praticamente na mente em desagregação do perturbado personagem do Cássio Gabus Mendes, um arquiteto obcecado com o suicídio de um marinheiro russo que testemunhou na primeira cena da série, e que passa os quatro capítulos tentando encontrar a esposa desaparecida em uma São Paulo cheia de personagens tão neuróticos quanto ele. Sim, não era uma coisa leve para assistir com a namorada. Mas eu nunca consegui esquecer.
Dente pra lá, dente pra cá, cuidado com o vampiro ele vai te pegar
João Luis Jr
Poucos temas foram mais explorados dentro da ficção ocidental do que o vampirismo. Temos filmes de terror com vampiros, temos suspenses com vampiros, temos romances com vampiros, temos atualmente uma série baseada no livro que já virou filme “Entrevista com o vampiro”, que infelizmente não é tão literal quanto parece e não consiste realmente numa série de entrevistas com um vampiro, estilo “Roda Viva”, em que um jornalista acusa um vampiro de enriquecimento ilícito e o vampiro responde gritando “mentiroso e caluniador, caluniador e mentiroso”.
Nada mais natural então do que usar os vampiros também para fazer comédia, sejam clássicos como o “Drácula, morto mas feliz” de Mel Brooks ou “Um estranho vampiro”, aquele filme do Nicolas Cage em que ele come uma barata e possivelmente isso não estava no roteiro, foi apenas um lance que ele quis fazer. E poucas adições a esse subgênero da comédia de terror foram tão divertidas quanto “O que fazemos nas sombras”, o falso documentário de Taika Waititi lançado em 2014 e que, em 2019, teve seu spin-off de mesmo nome criado para a televisão no canal FX e atualmente exibida no serviço Star+.
Ambientado numa casa onde moram 3 vampiros, Nandor, Nadja e Lazlo, além de seu lacaio Guillermo e do vampiro de energia Colin Robinson, a série consegue misturar diversos elementos que não necessariamente deveriam funcionar juntos - estilo mockumentary de séries como “The Office”, piadas sobre imigração, diversas mortes, frequentes menções a musicais - em tramas ao mesmo tempo caóticas e brilhantes, elevadas por um elenco dos mais engraçados da atualidade (Matt Berry é um gênio e rivaliza apenas com Maya Rudolph em “Big Mouth” em termos de pronúncias mais inesperadas de palavras na língua inglesa).
Uma das grandes comédias produzidas nos dias de hoje, é uma forte recomendação para qualquer um que goste de humor aleatório, brigas entre vampiros e lobisomens ou apenas de pontas do Wesley Snipes fazendo papel de Wesley Snipes porém ele é um vampiro na vida real. Sério, esse episódio foi bom demais.