Conforme solicitado #29
Agora é cinza
Acabou o carnaval, o réveillon não-oficial da República Federativa do Brasil, e agora 2023 vai começar de fato. É como se tivesse soado um grande alarme de rádio-relógio para acordar os brasileiros e obrigar o retorno da galera para o cubículo da repartição. A quarta-feira de cinzas é na verdade a segunda-feira do ano.
Nos próximos dias vamos acompanhar mais algumas tentativas de evitar esse choque de realidade, com foliões tardios insistindo em manter acesa a chama da festa em blocos que não passam de um grande encontro de negacionistas anônimos. Se você pudesse ouvir o pensamento dessas pessoas em vez do samba atravessado dos músicos de ocasião, uma palavra seria predominante: boletos.
É nesse espírito que entregamos essa newsletter, trabalhando contra a nossa vontade e até contra nossa condição física. Nesse número Gabriel Trigueiro fala bem do encerramento do carnaval sem citar Los Hermanos, João Luís Jr. propõe um bingo da folia para você avaliar seu desempenho nos últimos dias e Arnaldo Branco veste a camisa da empresa, escrevendo sobre o enorme trabalho que vamos ter pela frente nos 311 dias que faltam até o revéillon de mentirinha celebrado no dia 31 de dezembro. Além disso, temos o tradicional cartum do Arnaldo e as ancestrais dicas da redação.
Feliz (na medida do possível) ano novo.
Vem deslizando (vai!) / Que eu tô gostando (vem!)
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
A única coisa melhor do que o carnaval é o fim do carnaval. Afirmo isso como um homem de quarenta anos que tem hipertensão (felizmente controlada), dor crônica na lombar e que bebe regularmente pelo menos desde os 17 anos. Escrevo este texto na quarta-feira de cinzas, mas a rigor ainda tem bloco hoje e mesmo no próximo fim de semana. Não me importa: por mim já deu, já basta dessa porra.
Carnaval é aquilo que pode muito bem ser definido como “uma variedade de experiência religiosa”, como já disse o outro. Tem a ver com uma via de acesso ao absoluto e à transcendência. É um tipo de experiência comunitária que não tem paralelo com qualquer outra. Vai por mim.
Após quatro anos de um governo fascista e quase três anos de pandemia, e da consequente morte de mais de meio milhão de brasileiros, o carnaval deste ano foi uma celebração da vida e do amor sem igual. Sob certos aspectos foi a elaboração de um luto coletivo e de uma experiência traumática comum. Nossa celebração foi violentamente catártica e apoteótica.
No dia 17/2 à noite fomos ao cortejo do Embaixadores da Folia, na altura do Buraco do Lume, e foi lindo acompanhar a orquestra dos velhinhos tocando afinados Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha e Noel Rosa. Até a impostação de voz e o estilo de cantar do intérprete do Embaixadores é à moda de um Orlando Silva – soa dramático, exagerado, anacrônico e até engraçado aos nossos ouvidos e sensibilidade pós-moderna, mas tudo ali é bonito demais e casa à perfeição com o espírito do bloco e do cortejo.
No dia 18/2 fomos ao Prata Preta, um dos melhores blocos que há. Foi muito bom voltar à Praça da Harmonia: subir a ladeira, marcar com os amigos e amigas no Bar Dellas, comer churrasquinho de rua (caprichado na farofa), morrer de calor no meio de uma multidão amorfa, ter um êxtase religioso de Santa Teresa d’Ávila no meio do bloco e achar graça de tudo.
No domingo 19/2, a ideia era ir no 442 e ignorar o Boi Tolo, porque supostamente eu queria “evitar blocos grandes”. Mas como dizem, “o homem planeja e Deus ri”. Chegamos ao 442, a concentração era no Boulevard Olímpico, mas não encontrei vivalma, daí demos o braço a torcer e fomos caminhando até a Candelária, onde o Boi Tolo estava concentrando.
Chegamos justamente na hora da saída do cortejo ao longo da Avenida Presidente Vargas. Foi um negócio brutalmente bonito e, repito, quase religioso. Nesse domingo descobri que a Skol Beats sabor caipirinha está para o carnaval carioca assim como a heroína estava para os músicos de jazz da geração do bebop.
Segunda-feira, 20/2, foi o dia mais especial do carnaval: fui com o meu amor assistir aos desfiles na Sapucaí e saí apaixonado por absolutamente tudo e cada detalhe. Só a oportunidade de ter visto a Portela no seu centenário, apesar dos pesares, além da Imperatriz e da Vila Isabel, já justificou cada minuto de privação de sono.
Na terça 21/2, acabou o meu carnaval. Foi dia de Amores Líquidos e Piranhas Perdidas. A minha impressão é a de que absolutamente qualquer bloco no Morro da Conceição tem qualquer coisa de sublime e de absurdo.
Este carnaval de 2023 foi um troço bonito de doer, mas ainda bem que acabou. Todavia, felizmente ano que vem tem mais. Me aguarde.
Agora vai
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
O carnaval acabou e agora a gente vai ter que encarar nossa pequena lista de problemas, que são:
Capitalismo
As pessoas costumam lamentar o fato de que logo na vez delas aproveitarem as benesses do capitalismo o sistema entrou numa fase de deterioração, mas a verdade é que tudo está correndo de acordo com o plano. A ideia sempre foi criar uma sociedade onde os poucos ricos moram em fortalezas protegidas por muralhas e um número desproporcional de miseráveis vivem espremidos na periferia, em terras que também pertencem aos ricos. Estamos no último estágio da jornada do capitalismo rumo ao seu estado ideal, que é a volta ao feudalismo.
Militares
Eles continuam lá, impunes depois de participar de uma tentativa de golpe tão idiota que dependia de uma tremenda ingenuidade e da participação direta daqueles que sofreriam a tentativa de golpe, um pouco como aquele seu sobrinho de onze anos que acha que é só botar a rainha diante do rei pra conseguir o cheque-mate. Como a gente consegue estar tão à mercê desses sujeitos é um espanto — são caras querem fiscalizar urna eletrônica, tutelar a democracia e julgar seus próprios pares mas não conseguem evitar que armas antiaéreas do tamanho de uma montanha-russa passem pela fronteira.
Evangélicos
Nesse carnaval eles mostraram que, além de excessiva representação política, também têm uma forte e desagradável presença nas redes sociais. Rolou uma tremenda comoção porque um carro alegórico da Acadêmicos do Salgueiro representando a luta do bem contra o mal tinha a figura de um diabo — algo inevitável, a não ser que o bem vença por W.O.. Essa polêmica lembra o Roberto Carlos, que virou supersticioso e tirou a palavra “mal” das suas músicas, gerando o verso surrealista “se o bem e o bem existem, é preciso escolher”. Duvido o Estadão problematizar essa escolha.
Também viralizou um tuíte reclamando que no bloco, um lugar onde as pessoas mijam umas nas outras (?), pregar o evangelho é que é considerada uma conduta invasiva. Além de mostrar que ainda tem gente sem entender o princípio básico do consentimento, a postagem levantou a bola para um comentarista lembrar que se a sua religião incomoda mais do que levar um jato de urina é hora de repensar sua estratégia de relações públicas.
Bolsonarismo
Todo mundo avisou que o bolsonarismo não iria embora com a derrota do Bolsonaro e provavelmente nem com a sua morte, embora muita gente — não confirmo nem desminto que eu esteja nesse bonde — queira pagar pra ver. E ele está aí firme e forte, apesar de tudo que se está descobrindo sobre o ex-presidente, o que só prova que esse povo vive em um Brasil paralelo que, infelizmente, não tem fronteira nem alfândega e nem policiais com cães farejadores.
Terceira guerra mundial
Como sou idoso, já estou na minha terceira ou quarta temporada de iminência da Terceira Guerra Mundial. Me sinto como naquele meme tirado do filme dos irmãos Coen com o James Franco prestes a ser enforcado e perguntando para outro condenado: “first time?”. Mas me sinto ainda mais representado por outro meme, aquele que diz que de todas as distopias imaginadas por Hollywood para os últimos dias da humanidade nenhuma previu que, em pleno apocalipse, a gente ainda teria que ir pro escritório e trabalhar.
Grande Bingo Oficial do Carnaval 2023
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Teoria da dependência
Arnaldo Branco
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Cool rasta
Gabriel Trigueiro
A dica de hoje é Jonny Greenwood Is the Controller, um compilado de dub e reggae da Trojan Records, feito em 2007 pelo Jonny Greenwood, o meu Radiohead favorito. Sob certos aspectos é um disco que revela muito sobre a inflexão experimental ocorrida nos anos do OK Computer e do Kid A, no sentido de que o uso de samplers, efeitos eletrônicos não convencionais, métodos de produção pouco ortodoxos e da mesa de mixagem como um instrumento independente, isso tudo tem mais a ver com as experimentações de um Lee Perry, na época da Black Ark Studios, do que com os artistas de música eletrônica da Warp Music – a galera que é com frequência apontada como a principal influência do Radiohead dos anos 2000 em diante.
A seleção de artistas e canções é basicamente setentista e não é exatamente obscura, longe disso, mas também não é muito óbvia. Tem Marcia Aitken, Johnny Clarke, Delroy Wilson e Marcia Griffiths. Só bamba, repare. Jonny Greenwood Is the Controller funciona muito bem como curadoria e como porta de entrada para o universo rico, variado e encantador da música jamaicana.
Uma série sobre pessoas normais ou talvez nem tanto
João Luis Jr
Ainda que muitas pessoas estejam todos os dias fazendo postagens nas redes sociais para falar dos contras, são também inúmeras as vantagens de ser uma pessoa adulta engajada em um relacionamento romântico. Existe o afeto, existe o carinho, existe a cumplicidade, existe a companhia para ir ao Outback com alguém que não vai te criticar por pedir drink frozen sabor pêssego como seus amigos e familiares já fizeram. E além de tudo isso existe também o intercâmbio cultural, em que você, além de saliva, está também trocando séries, filmes e livros com uma pessoa que não apenas está te recomendando coisas como, ao contrário de conhecidos da internet, está disposta a encarar as consequências dessa recomendação e tolerar você falando durante horas sobre essas coisas depois.
Um grande exemplo disso é “Normal People”, drama que minha namorada me recomendou, adaptando um livro que eu não havia lido e que eu, sinceramente, jamais veria por conta própria, pois prefiro chorar sozinho em casa apenas por motivos de trabalho. Mas a série, protagonizada por Paul Mescal (o pai de “Aftersun”) e Daisy Edgar-Jones (uma espécie de Anne Hathaway sem as atrocidades) e baseada no best-seller de Sally Rooney, não apenas justificou demais as indicações ao Emmy e ao BAFTA, como também a maratona de 3 dias que fizemos aqui em casa para assistir aos 12 episódios.
Narrando a trajetória, desde o ensino médio até o fim da faculdade, de um casal um tanto quanto complicadinho da cabeça, “Normal People” é uma dessas séries que funcionam nem tanto pela inventividade da trama (homem que não expressa sentimento e mulher que sofre na mão da família infelizmente são coisas comuns na ficção e na vida real) quanto pela capacidade dos personagens de cativar a audiência, te levando a ficar feliz com cada coisa que dá certo e absolutamente desgraçado da ideia com cada complicação desnecessária que eles conseguem encontrar - como fazem grande parte dos casais de verdade.
Com atuações excepcionais dos protagonistas e episódios curtos e intensos, é uma grande recomendação pra fãs de dramas e romances realistas ou apenas qualquer um que gosta de pensar “ah, até que meus relacionamentos não foram tão caóticos assim então, pelo menos não convido meu ex pro meu vilarejo na Itália enquanto meu atual namorado fica quebrando copos de propósito pra tentar me irritar”.
Eu não resisto aos botequins mais vagabundos
Arnaldo Branco
Minha dica é uma série do youtube que eu adoraria ver com mais orçamento e repercussão em um canal de streaming. Trata-se de “Botecos do Edu”, onde o apresentador (e advogado, rubro-negro e salgueirense) Eduardo Goldenberg visita bares que conhece tão bem como se fossem lugares onde morou, convidando sujeitos que levam a boemia tão a sério quanto ele, como o historiador Luiz Antônio Simas e a chef de cozinha Kátia Barbosa.
Filmado de um jeito muito bacana, com cores saturadas e hiper-closes em iguarias de boteco que eu, no meu carioquismo sem remorso, tenho certeza que inspiraram a direção de fotografia da série “The bear”, o programa tem uma periodicidade irregular que é provavelmente culpa da onipresença do apresentador em todo lugar em que haja samba e petisco. Aliás o samba também é onipresente, pois o roteiro bastante solto permite que Eduardo comece a cantar algum clássico do gênero no meio de uma conversa sem prejuízo da continuidade, que de qualquer forma não é muito respeitada na ilha de edição.
Durante os episódios (que variam bastante em termos de minutagem) aprendemos sobre a excelência de alguns drinks e tira-gostos e também conhecemos histórias sobre disputas sanguinárias por cozinheiros, bares frequentados em sua maioria por clientes em liberdade condicional e outras coisas que parecem acontecer mais no Rio de Janeiro do que em outros municípios da União.
Você vai sentir ao mesmo tempo fome e vontade de tomar um Engov. Vai na fé.