Conforme solicitado #24
E agora para algo completamente diferente
Como qualquer pessoa nascida em território nacional sabe, o brasileiro não tem descanso. No nosso país sempre tem alguma coisa acontecendo, algum momento histórico sendo vivenciado, alguma bagunça sendo realizada, alguém tentando comprar banana de dinamite na Shopee com cupom de desconto. E isso acaba, é claro, pautando a nossa newsletter. Tu quer escrever sobre a novela, os caras invadem o planalto, você tem que opinar. Tá pronto o textinho sobre home office, o patriota preso reclama que tá se alimentando só de toddynho e você não se segura. A redação inteira gasta uma semana preparando um Almanacão de Férias da Conforme Solicitado, com caça-palavras e tudo, mas aí vai pelo ralo porque o governador de São Paulo diz que não sabia que não pode nomear parente. É complicado.
Então ainda que essa semana o Arnaldo não tenha conseguido resistir e tenha falado sobre como o retorno de Lula trouxe ao noticiário várias pautas que pareciam esquecidas e o João tenha se sentido na obrigação de sugerir soluções para os problemas do Brasil com as forças armadas, ao menos o Gabriel conseguiu escapar e falar de “Aftersun”, um filme lindo, porém mais triste que as outras duas pautas. Mas ao menos começou o BBB, galera, com sorte semana que vem estamos os 3 falando sobre como o programa tem um cara chamado Fred que na verdade se chama Bruno e tem esse apelido por causa de um jogador chamado Fred com quem ele não parece.
Ah, e claro, também temos as dicas da redação, porque tradições não morrem, e o cartum do Arnaldo, porque sem o cartum do Arnaldo a gente sinceramente nem sai de casa.
Bem vindos de volta!
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Além da obsessão por picanha o governo Lula trouxe de volta uma série de assuntos que tinham desaparecido do noticiário. Vamos a eles:
Crime de responsabilidade
Bolsonaro cometeu tanto crime de responsabilidade nos últimos quatro anos que imagino uma reunião de pauta com os jornalistas discutindo se isso ainda poderia ser considerado notícia, tipo “Carlinhos Maia pede desculpa por fala polêmica”. Como nenhuma dessas denúncias deu em nada, tirando notas de repúdio em que ficou claro que os autores da nota não tiram o chapéu para crime de responsabilidade, acho que o pessoal acabou desistindo mesmo. Talvez tenha virado consenso que crime de responsabilidade é algo que só pode ser cometido por adultos responsáveis e rola isenção de acordo com o nível de imaturidade do presidente em exercício. Lula nunca teve e não vai ter essa moleza.
Crise econômica
Alguém vai pedir um aparte e afirmar que a crise econômica no Brasil nunca ficou tanto tempo ausente para fazer um comeback, meio como a dengue e o Iron Maiden. Mas a cobertura da crise às vezes faz parecer que ela tirou um sabático, como agora, durante a gestão Paulo Guedes, onde vários analistas conseguiam ver o lado do bom de PIB negativo e onde achavam atenuantes para notícias como “População faz fila para conseguir osso”. Mas tem ocasiões em que acontece o contrário e a imprensa joga luz sobre a crise como se ela fosse uma celebridade tentando fugir dos paparazzi. Quem se lembra da editoria “Apesar da crise”, que trabalhou dobrado no governo Dilma? Onde toda notícia boa era precedida por essa ressalva, como em “Apesar da crise, Mengão goleia Real Madrid na decisão do Mundial de Clubes”? (OBS: notícia falsa para mero fim de ilustração). E agora a crise econômica do governo Lula já está batendo recordes, pois segundo especialistas se instalou dois meses antes do próprio governo Lula começar.
Liturgia do cargo
Antes do Bolsonaro a imprensa sempre pedia respeito à liturgia do cargo, expressão que significa que um presidente deve parecer, como direi, presidencial, e foi cunhada pelo Sarney, então pra começo de conversa nem devia ser levada em consideração. Mas ela foi curiosamente aposentada durante a vigência de um chefe de estado que comia frango usando o próprio colo como bandeja de farofa e possivelmente ejaculou em um poltrona Sérgio Rodrigues. Deve voltar a ser usada agora para cobrar postura do presidente que não podia nem fazer uma festa junina.
Presunção da inocência
Depois de ficar super em baixa na época da Lava Jato, quando transformaram delação numa espécie de programa de milhagem pra bandido onde os pontos acumulados eram trocados por redução de pena, a presunção da inocência voltou com tudo. Agora você não pode nem insinuar que a justiça deveria fazer algo a respeito de crimes como prevaricação, peculato, conspiração, discurso de ódio e genocídio que vai aparecer comentarista falando em devido processo legal, que é preciso mais conciliação e menos revanchismo ou que qualquer investigação nesse momento pode melindrar os militares. Longe vão os tempos em que queriam condenar todo mundo (por todo mundo eu quero dizer políticos de esquerda) através da teoria do domínio do fato.
Mas o que o pessoal costuma esquecer é que a presunção da inocência não funciona muito bem quando surge uma montanha de provas contra o suspeito. E, como dizia Shakespeare, anistia é o caralho.
Aftersun
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Aftersun, o filme da diretora/roteirista estreante Charlotte Wells, esteve onipresente na lista de melhores filmes do ano passado de um monte de publicações especializadas, da Sight and Sound por exemplo, e gerou um bafafá daqueles. Meu interesse começou quando assisti ao trailer e, mesmo sem prestar muita atenção nos diálogos, já me peguei chorando.
O filme é sobre as memórias das férias de Sophie (Frankie Corio) em um resort na Turquia, meio kitsch e decadente, como todo resort aliás, com seu pai Calum (Paul Mescal), quando ela tinha apenas 11 anos. A dinâmica da relação entre pai e filha é construída a partir de elipses, silêncios, gestos delicados, às vezes imperceptíveis, e o não dito.
Paul Mescal interpreta com complexidade e delicadeza um pai jovem e divorciado, de apenas 30 e poucos, que em um momento lá chega a ser confundido como irmão da própria filha. Os problemas de Calum são mais sugeridos do que evidenciados. A beleza do filme é que essas coisas são percebidas de modo mais ou menos incompleto e fragmentado pela Sophie de 11 anos e a nossa percepção, como espectadores, é filtrada e mediada pela sua sensibilidade de criança e de filha.
Aftersun é um filme, não sei até que ponto dizer isso é um clichê, mas é verdade, paciência, cheio de camadas. Se por um lado a nossa percepção a respeito de Calum é filtrada pela sensibilidade da Sophie de 11 anos, por outro lado o filme é estruturado a partir de dois eixos narrativos: as férias de pai e filha e as memórias de Sophie, agora com 30 e tal, a idade do seu pai durante as férias, desse mesmo período.
Rememorar é um exercício de atribuir sentidos e mesmo de construir uma história – que nem sempre é coerente, inteligível ou fácil de contar. Aftersun, como já disseram, contém dois filmes em um: é a história de coming of age de Sophie, mas também é uma história de despedida e de acerto de contas com quem foi seu pai. Calum na superfície é plácido e sóbrio, mas vive em angústia existencial. A dissonância entre o que sente e aquilo que externa é o que qualifica essa interpretação como brilhante.
Através de conversas na beira da piscina, karaokês e fliperamas, Charlotte Wells nos recorda que embora a tendência dos filhos, ao menos quando jovens, seja a inclemência com os erros dos pais, isso não nos leva muito longe. Pelo contrário. Aftersun é profundamente humano, delicado e tem uma sensibilidade de cinema da nouvelle vague. É um filme compassivo com a natureza imperfeita e quebrada da parentalidade: os pais quase sempre dão o melhor de si, mas ao mesmo tempo estão sempre no escuro, como nós mesmos, a propósito.
Daí os erros, a distância e o self-shaming. Depois de assistir a Aftersun, saímos com mais amor e cuidado com eles, ou com a memória deles, e até mesmo com a gente. No final o que fica é seu pai te levando pra comer empadinha de queijo, numa Vila Isabel dos anos oitenta, e a sua mãe te escutando sobre aquele pé na bunda que você levou na adolescência, com infinita paciência, carinho e atenção. Se isso não é amor, nada mais é.
4 soluções possíveis soluções para a questão das forças armadas no Brasil
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Privatização: Imagine uma estatal com mais de 300 mil empregados, orçamento na casa dos 100 bilhões e que, além de ter sido criada para realizar uma atividade em que ela não se envolve desde 1945, tem um grande histórico de agredir, matar ou torturar contribuintes? Essas são as forças armadas brasileiras, áreas de altíssimo custo e baixíssimo retorno do nosso funcionalismo público, mas que infelizmente não recebem a mesma atenção privatizante que diversos outros órgãos brasileiros.
Afinal, imagine como seria se os carteiros tivessem dado um golpe em 64 e desaparecido não só com encomendas mas também com pessoas? Imagine se toda filha de funcionário do BNDES tivesse direito a pensão vitalícia? Imagine um mundo em que os funcionários da Caixa Econômica não abrem uma conta a Segunda Guerra e agora ficam apenas colocando os caixas mais jovens pra pintar meio-fio? Se todas essas empresas já foram colocadas na mira da privatização por muito menos que isso, por que não imaginar um Brasil em que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica vão viver sobre o mesmo nível de cobrança e poderemos realizar o sonho liberal de ter forças armadas privatizadas, com ações na bolsa, onde um coronel pejotinha poderá dar ordens para um soldado estagiário não-remunerado que está ali apenas “pela exposição” e pra “fazer portfólio”?
Desmilitarização dos militares: Vigilância das fronteiras? Importante. Soberania nacional? É legal. Manutenção da lei e da ordem? Tem quem goste. Proteger os interesses nacionais? Bom também. Braço forte e mão amiga? Hmmmmm, gostoso, fale mais. Ou seja, é fácil perceber que, em termos de missão, de objetivos, não existe nada de necessariamente errado com o exército brasileiro. O grande problema é que eles não apenas não são tão bons assim em realizar essas tarefas como com uma grande frequência acabam deixando isso de lado pra fazer uns lances que sinceramente ninguém pediu (“irmão, eu te falei pra tomar conta da casa, não atirar na minha avó porque ela tentou pegar um negócio na cozinha”).
Por isso talvez a solução seja, mais do que o fim das forças armadas, o fim da cultura militar que permeia as nossas forças armadas. Menos hierarquia, menos obediência cega, menos gente gritando com os outros de bobeira. Mudar o lance do ambiente quase exclusivamente masculino, rever essa coisa aí do serviço militar obrigatório, talvez deixar a galera usar umas roupas mais confortáveis porque a pessoa fica de roupa camuflada e coturno no sol em pleno verão a tendência é ela odiar o resto da sociedade mesmo. Não tô justificando, apenas não duvido que aconteça.
Redistribuição de funções: Daí que chegamos num ponto que não tem jeito. Não dá pra privatizar, não dá pra desmilitarizar, não dá pra reduzir contingente, tem é que se virar com a galera que está aí. Pode ser então a hora de tentar, ao invés de mudar o militar, descobrir, dentro da sociedade brasileira, onde ele pode sim oferecer algum tipo de contribuição.
Militar gosta de gritar? Vamos colocar um sargento em cada fila do Spoleto ou Subway, gritando “VAI VAI VAI” quando chegou a vez de alguma pessoa e ela ainda não sabe o que quer. Milico gosta de fazer intervenção? Vamos criar um serviço em que você pode pedir uma intervenção militar pessoal, com um cabo que chega te dando socão se você estourar seu cartão ou cerceia sua liberdade de imprensa se você tentar mandar mensagem pra ex. O importante é contribuir, galera.
Substituição por médicos cubanos: Uma das mais ousadas fake news distribuídas durante o governo Dilma Rousseff, a ideia de que os médicos cubanos do Programa Mais Médicos seriam, além de formados em medicina, também guerrilheiros treinados pelo exército de Cuba, tinha a intenção de ser mais uma prova assustadora dos riscos do comunismo, mas acaba sendo na verdade um dos conceitos mais práticos e fascinantes que já surgiram na história recente do Brasil.
Afinal, o quão bom não seria se, no lugar de mais de milhares de pessoas de farda divididas entre atividades administrativas que não te ajudam muito e atividades militares que podem resultar em você tomando tiro, nós tivéssemos esse mesmo número de médicos disponíveis, distribuídos entre diversos quartéis, guarnições e demais ambientes militares espalhados pelo país? Você cortou um dedo? Para na frente do quartel. Sua mãe tropeçou e machucou a perna? Chama o exército. Gente fardada subindo o morro? É pra ajudar dona Genésia que teve enxaqueca, tão subindo com um Revange que vai resolver o lance, aqui é braço forte, mão amiga, copinho de água já do lado.
Quartelada no sigilo
Arnaldo Branco
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
“I’m not black, I’m OJ… Ok”
Arnaldo Branco
Minha dica é “O.J.: Made in America” — sim, esse documentário em cinco partes já tem uns anos de estrada (é de 2016) e todo mundo viu e comentou na época, mas sempre tenho a esperança de alcançar os jovens que acham que o mundo começou ontem, os mais fáceis de enganar, e os velhos retardatários como eu.
A série não é mais um produto para satisfazer a curiosidade mórbida de muitos fãs de true crime, mas sim um ensaio sobre a luta do homem negro para conquistar seu espaço na sociedade americana sem contudo sacrificar sua essência. O primeiro episódio, o mais impressionante, mostra a construção da persona de O.J. Simpson, um homem ao mesmo tempo super-poderoso em suas capacidades atléticas e inofensivo na apresentação de sua figura pública, toda dedicada à tarefa de sua aceitação pelos brancos ricos de Los Angeles com quem desejava socializar.
Mas os episódios seguintes vão mostrando as rachaduras na máscara simpática, mesmo antes do ato brutal que revelou a grande mentira por trás de sua cordialidade de resultados — até culminar no seu julgamento, que aconteceu poucos anos depois da grande rebelião causada pela absolvição dos policiais que espancaram Rodney King. O homem que nunca quis se associar à luta contra o preconceito racial poderia servir como herói do movimento negro mesmo sendo, segundo todas as evidências, um assassino cruel?
Qual o preço a pagar quando essa aliança tardia com o ativismo político quebra o pacto que manteve por anos com a América branca? Vemos a resposta na espiral decadente que virou o resto de sua vida.
Pai é quem cria
Gabriel Trigueiro
Lembro que quando assisti a Mandaloriano, uma das séries mais divertidas dos últimos anos, comentei com minha mulher que o título em pt-br poderia ser “PAI É QUEM CRIA”, por causa da relação do personagem título (interpretado por Pedro Pascal) e Grogu (mais conhecido como Baby Yoda). Mandaloriano era abertamente inspirada em Lobo Solitário – o mangá setentista de Kazuo Koike, em que pai e filho enfrentam sozinhos a família Yagyu, durante o apogeu do Período Edo.
Em The Last of Us mais uma vez vemos Pedro Pascal em um papel no qual seu personagem estabelece uma relação paterna com alguém que a princípio é um estranho: no caso a adolescente Ellie, interpretada sensacionalmente por Bella Ramsey. The Last of Us é a adaptação de um jogo de videogame extremamente cultuado, o que até aí não me disse porra nenhuma: sei que é uma posição conservadora e meio old man yells at cloud e tal, mas paciência, no momento atual a última coisa que o cinema (ou a TV, no caso) precisa é de adaptações de videogame.
No entanto, quando soube que a série tinha dedo de Craig Mazin, o camarada geninho de Chernobyl, me empolguei e fui ver qual era. The Last of Us é incrível. A história parte daquele clichê de futuro pós-apocalíptico, terra arrasada e zumbis, mas é baseada em uma combinação delicada e precisa de ação e construção cuidadosa de personagens.
Tem alguma coisa, é claro, de A Estrada, do Cormac McCarthy, mas o tom é outro, só vendo. Pascal e Ramsey estão incríveis juntos e o orçamento estratosférico do negócio cria uma experiência realmente imersiva de worldbuilding, como há muito tempo não se via. Talvez apenas em Os Anéis de Poder, claro.
Tanto The Last of Us quanto Aftersun são obras bem diferentes, uma é um blockbuster baseado em um jogo de videogame e a outra é um filme indie britânico, mas ambas falam sobre as belezas e as complexidades da parentalidade, seja como for e em que formato ela vier. Talvez essa semana eu tenha que pedir uma sessão extra de terapia.
Xou da Xuxa, porém com drogas
João Luis Jr
Uma espécie de Vila Sésamo onde as crianças enfrentam questões existenciais, a pessoa que se fantasia de boneco gigante faleceu e o convidado especial que vai ensinar as crianças sobre como dá pra fazer música usando qualquer utensílio da casa não consegue fazer música usando os utensílios da casa, “John Mulaney & the Sack Lunch Bunch” foi um especial da Netflix gravado - alerta de não-surpresa - pelo comediante John Mulaney, sendo ao mesmo tempo uma homenagem e uma paródia de diversos programas infantis dos anos 80.
Com participações especiais que envolvem desde David Byrne e Natasha Lyonne até Jake Gylenhaall e Richard Kind, é um desses conceitos caóticos e que talvez não sejam necessariamente pra todo mundo mas que conseguem ser estranhamente cativantes e engraçados se você for o tipo de pessoa que consegue sentir a magia numa criança cantando uma música sobre como ela nunca mais quer comer nada na vida além de macarrão com manteiga. Sério, parece apenas esquisito mas é sim bem divertido, galera.