Silenciamento do bem
“Harvey, I often wish I were deaf and wore a hearing aid. With a simple flick of a switch, I could shut out the greedy murmur of little men” - J.J. Hunsecker (Burt Lancaster), Sweet Smell of Success
Infelizmente não existe assunto que seja imune à opinião de um internauta, e o tempo provou que quanto mais grave a questão maior a participação de leigos sedentos por validação — que não raro recebem em troca sua total humilhação pública. Mas a repetição desse ciclo não parece intimidar ninguém, e no próximo assunto complexo, que certamente não deveria estar sendo discutido em plataformas com limite de caracteres, mais palpites não-solicitados vão desfilar diante de nossos olhos impotentes.
Nesse sentido, Conforme Solicitado é um oásis, porque nós só nos arriscamos em assuntos que entendemos completamente. Infelizmente esses assuntos são coisas como episódios do desenho animado do Charlie Brown, edições raras do gibi do Homem-aranha e gravações de sobras de estúdio dos grandes sucessos do Katinguelê. Lembre-se que você pode frequentar esse safe space de graça, mas se você ficar suficientemente agradecido por ser poupado de um hot take sobre segurança pública ou economia sustentável, existem os planos pagos da Conforme solicitado: R$ 15 mensal, R$ 150 anual ou R$ 250 anual plus.
Nesse número João escreve sobre as estratégias de engajamento da internet, Arnaldo \ fala sobre o affair Jair Renan e o que ele tem em comum com a questão Palestina (calma) e Gabriel resenha a quarta e última temporada de “Atlanta”. Além disso temos dicas, cartum e uma vontade de agradar digna de um exército de librianos. Aproveitem.
Lugar de fala
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Então teve esse papo do suposto caso do Jair Renan Bolsonaro com um assessor. Tirando a atitude condenável de parte da esquerda de usar homofobia para combater homofobia, também rolou uma postura radicalmente oposta, como quando um dos caras que fez parte daquele esquisitíssimo comitê de diversidade do Carrefour sugeriu que o movimento LGBTQIAPN+ deveria acolher o 04. Que bom que não posso dar minha opinião sobre isso, às vezes não ter lugar de fala é uma benção.
A esquerda está diante de uma armadilha. Um caso como esse é excelente para demonstrar a hipocrisia do discurso da direita, mas para grande parte da militância repercutir é contribuir para a homofobia estrutural. Toda vez que alguém posta uma piada sobre o assunto aparece alguém para reclamar disso, geralmente pouco antes de vir outro para reclamar da reclamação, tornando o post um verdadeiro Megazord de lacrada.
É possível que o assessor tenha inventado tudo e que o Jair Renan consiga provar isso na justiça. Mas o estrago — estrago no sentido que para o campo deles o amor entre dois homens é considerado uma aberração — está feito, e isso pode ter um efeito prejudicial às pretensões políticas do clã. Às vezes acho que os militantes deveriam descansar um pouco e apenas apreciar o karma trabalhando.
Mas seguindo: a esquerda tem um impasse parecido na questão de Israel, do Hamas e da Palestina. O Hamas é um grupo terrorista com métodos brutais, e agora o debate está contaminado porque toda defesa da causa Palestina está sendo distorcida como uma defesa do Hamas. Lembrar nas redes sociais que o governo de Israel comete crimes graves diariamente é pedir para receber um inventário de todas as atrocidades cometidas no ataque do dia 7.
Com isso, muita gente tem preferido silenciar, tanto é que o hot take mais usado pela galera foi “chega de hot take”, além de declarações inócuas pra marcar que você está preocupado com a questão, mas não a ponto de se envolver em um debate com uma arroba usando a bandeirinha de Israel.
Hoje em dia postar “sou contra todas as guerras” quase tá dando direito ao Prêmio Nobel da Paz e tuitar “toda questão tem dois lados” tá valendo por um doutorado de sociologia. Sobre esse atentado à liberdade de expressão o MBL não fala.
‘Twin Peaks with rappers’
Gabriel Trigueiro (Instagram: gabri_eltrigueiro)
Então, me lembro como se fosse hoje. Donald Glover, no longínquo ano de 2016, promovendo a série que iria estrear logo menos: Atlanta. Aliás, também me lembro de como ele a divulgou para os veículos que o entrevistaram na época: “Twin Peaks with rappers”.
O que faz absolutamente todo o sentido, levando-se em consideração a ambientação soturna, o humor intencionalmente exagerado e as pitadas de surrealismo aqui e acolá.
O pano de fundo é, claro, Atlanta, e o boom de cena de rap e trap da última década, que a transformou no equivalente negro daquilo que Seattle foi para o grunge, durante os anos noventa.
Os quatro personagens principais (Earn, Paper Boy, Van e Darius) são complexos e muito bem desenvolvidos. Atlanta não comete o mesmo erro de Mad Men, por exemplo, que saturou o quanto pôde o arco do personagem principal e perdeu a oportunidade de desenvolver o da Peggy Olson adequadamente. Don Draper nadinha, Peggy Olson rainha.
Em Atlanta, aliás, à medida que a série se desenvolve, Earn vai perdendo protagonismo em detrimento dos outros três personagens citados. O que é, me parece, uma decisão de roteiro inteligente e corajosa.
Atlanta tem fôlego literário, essa é a verdade. Em que pese a direção de Hiro Murai, o brabo, o que nos salta aos olhos não é tanto a presença dos recursos de cinema da série, que estão lá e são pica, claro, mas muito mais o texto, que é absurdo.
Atlanta é southern gothic purinho, cada episódio poderia ser um conto curto de alguém como Flannery O’ Connor — ironicamente uma senhorinha branca, católica e vagamente racista que, sobre o Sul dos EUA, uma vez afirmou: “é mais fácil esbarrar com um anjo nas ruas da Geórgia do que com um corretor de seguros”. Esse pique.
A quarta temporada de Atlanta, que acaba de chegar na Netflix, tem os elementos que conhecemos: horror gótico, é igualmente insólita, é engraçada do jeito dodói de sempre e continua sendo o lugar no qual há a discussão mais sofisticada que você vai encontrar a respeito das relações raciais nos EUA.
É também a temporada em que: enfim descobrimos o motivo pelo qual Earn abandonou Princeton; tem refs bonitas à obra de Andrew Wyeth; a volta da Black American Network (bicho, esse episódio!) e um assassino serial que mata pessoas que já fizeram a coreografia de “Crank That”, do Soulja Boy.
Atlanta é das coisas mais preciosas que já surgiram na TV americana e, na moralzinha, deveria ser discutida com tanto respeito e reverência quanto The Wire, Sopranos e Mad Men. Na boa, é o mínimo.
Anger management
Arnaldo Branco
Pequenas grandes novas tendências da internet
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
Chantagem e ameaças no Instagram
Tudo começou de maneira relativamente inocente. A primeira corrente dizia "uma foto aleatória para ter uma boa semana" e depois veio algo como "uma selfie para dar sorte neste mês". Até aí tudo bem. Mas rapidamente o tom começou a ficar um pouco diferente. Postagens como "uma foto de viagem senão vai ficar sem viajar" ou "uma foto de algo verde senão vai ter azar", já traziam uma conotação vagamente negativa, mas ainda assim dava pra entender que era uma brincadeira.
Foi depois disso que as coisas ficaram esquisitas, claro. "Uma foto do seu filho senão ele vai crescer achando que nunca foi amado de verdade e você sente vergonha dele" era ao mesmo tempo bem esquisito e longo demais. "Uma foto do seu apartamento senão vamos invadir seu prédio de madrugada e plantar explosivos entre as vigas da garagem de maneira que sua residência e tudo que você possui sejam absolutamente obliterados" não apenas já constituía legalmente uma ameaça como era estranhamente específico.
Mas foi só quando minha amiga repassou nos stories a corrente "Uma foto do seu marido senão iremos atirá-lo dentro da Baia de Guanabara, estamos falando sério, ele está amarrado agora no porta-malas de um Tempra 97 e a não ser que você poste uma foto dele, nesse exato momento, nós vamos acabar com a vida desse vagabundo miserável e deixar seus filhos sem pai" que eu percebi que as coisas foram longe demais.
Passando com uma vassourinha para pegar o que restou no fim da xepa do engajamento
No começo era um misto de carência e falta do que fazer. Alguém tuitava perguntando se na cidade do outro também estava chovendo, outra pessoa discutia se era biscoito ou bolacha, alguém fazia uma thread de opiniões impopulares que quase sempre eram impopulares por não fazerem o menor sentido. Isso chamava a atenção de outras pessoas carentes e sem muito o que fazer, que iam lá dizer que não, não estava chovendo, que obviamente o certo era bolacha e quem pensava diferente era fascista ou que Friends era claramente melhor que a Grande Família, como assim????
Até que um dia alguém decidiu monetizar o engajamento no Twitter. Sim, oferecer recompensas financeiras para os tuites que geram mais discussão, para as pessoas que causam mais interação, para as postagens que motivam alguém a, mais do que curtir, mais do que dar um rt, digitar alguma coisa. Em seis meses 80% da rede se tornou “opiniões impopulares”, em um ano um jovem conseguiu se tornar milionário ao falar que “arroz com feijão era superestimado” e o último tuite postado antes do Twitter ser totalmente desligado continha o texto “como isso se chama na sua cidade?” logo acima da foto de uma maçaneta.
Todo mundo é um pouco NPC de si mesmo
E daí que na primeira fase do processo todo mundo descobriu que estava acontecendo um lance batizado de “live de NPC” em que algumas pessoas realizavam lives no Tiktok em que performavam alguns movimentos repetitivos e emitiam alguns sons peculiares em troca de uma pequena quantidade de dinheiro. Na segunda fase um monte de gente começou a fazer essas lives do Tiktok, performando alguns movimentos repetitivos e emitindo alguns sons peculiares em troca de uma pequena quantidade de dinheiro.
Já na terceira fase todo mundo ficou discutindo o que significaria esse lance de fazer live no Tiktok performando alguns movimentos repetitivos e emitindo alguns sons peculiares em troca de uma pequena quantidade de dinheiro. Mas foi só na quarta fase que as pessoas começaram a ficar meio tristes, porque bateu uma sensação ruim de que, no ano de 2023, meio que todo mundo tá performando alguma atividade repetitiva, emitindo algum som peculiar e torcendo pra receber alguma pequena quantidade de dinheiro. Assinatura da Conforme, nham nham. Assinatura da Conforme, nham nham. Assinatura da Conforme, nham nham.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Breves viagens de cinco minutos até onde nenhuma animação nunca foi
João Luis Jr.
Ainda que eu tenha algumas boas lembranças da série original, cujas reprises eu assistia quando criança e cujos filmes eu vi quase todos na Sessão da Tarde, foi só com “A nova geração” que Jornada nas Estrelas realmente me pegou.
As aventuras de Picard, Riker, Data e até mesmo do um tanto quanto irritante Wesley Crusher tiveram um grande efeito na minha cabeça de adolescente fã de ficção científica e me levaram a buscar sempre acompanhar o que estava acontecendo nesse universo, fossem filmes um pouco decepcionantes (“Star Trek Beyond” foi bem pegado), sejam séries excelentes que eu acabei parando de ver porque não tenho estrutura pra assinar Paramount nesse momento da minha vida, existe um limite pro quanto de streamings um homem pode assinar e o quanto de torrents ele consegue lembrar de baixar (mas saudades “Star Trek Discovery”).
E sendo uma pessoa que gosta de Star Trek e tenta sempre se manter atualizado sobre o que está acontecendo nesse universo – acompanhei as informações sobre o crossover entre “Lower Decks” e “Strange New Worlds” mesmo sem assistir nenhuma das duas séries – foi com muita surpresa que descobri a existência de “Star Trek: very Short Treks”, uma série de curtas-metragens em animação que faz piadas envolvendo os mais variados personagens das mais diversas versões da série.
São desenhos, sempre entre três e cinco minutos, que brincam com coisas que vão desde o estilo de animação da versão em cartoon da série original até as diferenças culturais entre as várias espécies existentes em Star Trek, tudo misturando não apenas um imenso conhecimento do cânone da série como também um senso de humor extremamente bobão, dois elementos que realmente cativaram meu coração.
Então se você também é fã Star Trek, se também gosta de comédia e também tem cinco minutos perdidos aí pra gastar, “Star Trek: very Short Treks”, é algo que vale sim a pena conferir.
Working class hero
Arnaldo Branco
Lembro que quando David Beckham foi vendido para o Real Madrid em uma transação recorde circulou a notícia de que o valor do passe foi coberto em um dia pela venda de centenas de milhares de camisas oficiais com o seu nome e número. Foi quando entendi que o dinheiro havia modificado profundamente a dinâmica do esporte — uma conclusão bem tardia, visto que a criação da Premier League, um dos primeiros passos para a gentrificação do futebol, já fazia mais de dez anos.
A série documental “Beckham” (Netflix, 2023) acompanha essa transformação. Embora o astro inglês realmente fosse um ótimo futebolista, sua cotação como celebridade era ainda maior, e seu valor como mercadoria e garoto propaganda suplantava a noção geral em relação ao importante papel que cumpria nas equipes em que jogava. Por isso foi muito contestado, ainda mais porque casou com uma Spice Girl e serviu como um dos protótipos do tipo social que ficou conhecido como metrossexual.
Pra piorar, teve um ponto baixo na Copa de 1998, quando foi expulso estupidamente nas oitavas de final contra a grande rival Argentina, um episódio que os tabloides ingleses exploraram como se ele tivesse entregado segredos de Estado para Adolf Hitler.
O documentário parece ter sido feito para mostrar que as aparências enganam e que por trás do popstar sempre houve um egresso da classe trabalhadora muito fiel às suas raízes. Para isso, os realizadores usam a pobre da Victoria Beckham de escada, com a Posh Spice sendo apresentada como uma dona de casa relapsa, enquanto ele faz todo o trabalho pesado — o que talvez seja verdade, vamos dar o benefício da dúvida; e quem sabe se no fim das contas essa configuração represente uma derrota do patriarcado.
Aliás, a série não dá alívio para o marido Beckham, falando abertamente de um caso extraconjugal que quase separou os queridinhos da Grã-Bretanha, além de sublinhar o fato do jogador quase nunca levar em consideração o conforto da sua família em suas decisões profissionais.
De qualquer forma, um bom apanhado da trajetória de um homem que viveu toda sua juventude no olho do furacão.
Back to the basics
Gabriel Trigueiro
Gosto muito de Toro y Moi, o projeto do Chaz Bundick, que começou naquelas ondas do chillwave (alguém se lembra?), flertou com ambient, psicodelias variadas, synthpop e até hip hop.
Pois é, ocorre que durante a pandemia ele voltou para sua cidade natal (Columbia, na Carolina do Sul) e ficou confinado lá, durante meses, e o resultado disso é “Sandhills”, um EP bonitão com cinco faixas.
E daí que é um disco de indie folk, gostosinho que só, com uma atmosfera de nostalgia no campo que me pegou demais.
O EP de “Sandhills” foi lançado com um curta para o YouTube — dirigido por Steve Daniels, broder que já havia dirigido um videoclipe para a banda do Chad, durante os anos de high school, e produção de Katherine Perry, a professora de fotografia de Chad, também da época em que estava na high school e tal.
“Sandhills” é uma carta de amor nostálgica e bonita que só. Vai sem medo.