Melhorias sempre
Chegamos enfim ao número 43 da Conforme Solicitado. Ahoy, criançada, etc. e tal. Não é efeméride de coisa alguma, mas vamos fingir que sim. Como sempre, a vida não para de acontecer. Queda de braço entre Petrobras e Ibama; temporada de Ted Lasso chegando ao fim com arco de redenção do Nate; CPI do golpe e do MST e, claro, finale de Succession. Como diz aquele meme antigo “everything happens so much”.
Todavia, a grande notícia da semana é a estreia da newsletter do João Luís, a “Mogo não Socializa”: sobre “gibis e coisas relacionadas ou não a gibis”. Vai lá que tá lindona.
Nosso sonho secreto é criar um império de newsletters e um ecossistema cultural no qual pessoas discutam euforicamente sobre um texto de 33 minutos de leitura que relaciona um roteiro para se comer parmegiana no Rio de Janeiro com o vício do comediante John Belushi em cocaína da mesma forma que discutem sobre podcasts de true crime ambientados em Higienópolis.
Nesta semana, Gabriel escreve sobre direita americana e racismo; João sobre alguns finais alternativos de Succession e Arnaldo sobre a frase mais conhecida de Lenin que não é de Lenin. Além disso, temos cartum do Arnaldo e as dicas da redação.
O último que chegar tem união estável com o padre. Melhorias sempre, tropa.
Jeryd Mencken: H.L. Mencken + Jared Taylor
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Desde que surgiu em Succession o político conservador Jeryd Mencken, muito foi falado e escrito sobre sua inspiração na vida real ter sido uma mistura de gente como o ex-presidente dos EUA Donald Trump e o governador da Flórida e atual candidato à presidência Ron DeSantis.
Tudo muito justo e correto, mas o que sempre me intrigou mesmo foi a escolha do nome do cabra. Ou melhor, do sobrenome. “Mencken” sempre me pareceu uma referência muito específica ao jornalista e crítico cultural do início do século 20, H.L. Mencken — o cara que “descobriu” Scott Fitzgerald; defendeu que a literatura fundacional dos EUA tinha em Mark Twain seu santo padroeiro e, não bastasse isso tudo, foi um dos principais incentivadores de Gilberto Freyre para que ele publicasse sua recém-escrita tese de doutorado: “Casa-Grande e Senzala”.
E daí que dia desses pesquisei na internet se alguém, além de mim, havia feito essa associação. Achei que encontraria uma penca de textos falando disso, mas esbarrei apenas em um dodói no Reddit sugerindo que o nome Jeryd Mencken poderia ser uma referência ao supremacista branco Jared Taylor e, claro, ao H.L Mencken, como eu já havia pensado. Gostei do palpite e resolvi testar a validade da hipótese.
H.L. Mencken era um elitista e, melhor dizendo, um nietzschiano — foi a primeira pessoa a traduzir Friedrich Nietzsche para o inglês, como registrado em “American Nietzsche: A History of an Icon and His Ideas”, de Jennifer Ratner-Rosenhagen.
Era, portanto, alguém com uma visão de mundo contramajoritária diante da cultura política liberal e a autoimagem democrática e igualitária dos EUA.
Não à toa, décadas depois, quando surgiu o movimento conservador norte-americano, e os sujeitos tiveram que correr atrás de uma genealogia intelectual mais ou menos respeitável, elegeram Mencken como uma espécie de pai fundador do movimento.
Mas o fato é que essa ideia de um H.L. Mencken conservador é, para dizer o mínimo, uma incorreção histórica. Leio em “H.L. Mencken: Racist or Civil Rights Champion?”, artigo de Larry S. Gibson, que o buraco era mais embaixo.
Ainda que o sujeito tenha recebido a pecha de racista e de antissemita, depois da publicação de suas correspondências pessoais, entre o final da década de 1980 e início da década de 1990, sua relação com a questão racial era no mínimo ambígua.
Muito embora tenha se referido aos negros com o uso da n word inúmeras vezes, e tenha escrito coisas objetivamente racistas e indefensáveis, H.L. Mencken sempre se posicionou publicamente contra a Ku Klux Klan e apoiou inúmeras lideranças da NAACP, como Juanita Jackson, Carl Murphy e Walter White.
Durante a época em que editou a revista American Mercury, H.L. Mencken chegou a publicar W. E. B. DuBois, talvez a maior liderança política e quadro intelectual dos negros nos EUA, por exemplo.
Todavia, ainda que o sujeito jamais tenha sido, a rigor, alguém de direita, até porque não era bem assim que os campos políticos estavam delimitados nos EUA do início do século passado, a ala supremacista da direita contemporânea o ama. Vai entender.
Jared Taylor, por outro lado, representa o racismo sem ambiguidades e com verniz intelectual da American Renaissance. Taylor já falou coisas como por exemplo:
Europe is in a life-or-death struggle. Europe can’t remain Europe without Europeans. When we are being replaced by non-Europeans, it threatens our core way of life
e
Blacks and whites are different. When blacks are left entirely to their own devices, Western civilization — any kind of civilization — disappears.
Jared Taylor foi o camarada que, durante a década de 1990, publicou “The Color of Crime”, mais um livro pseudocientífico conservador que tentava provar a maior disposição de negros para cometer crimes.
Fosse em uma interpretação à la carte, e certamente distorcida, da obra de H.L. Mencken ou na presença de alguém como Jared Taylor e a American Renaissance, fato é que a existência de um personagem como Jeryd Mencken em Succession funciona como um lembrete de como determinadas ideias e argumentos sobre raça sempre foram o tronco principal e a espinha dorsal da direita americana.
Besta é tu
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
A direita gosta de atacar a esquerda com uma frase de Lenin que Lenin nunca disse: “acuse-os do que você faz, chame-os do que você é”, que além de apócrifa é ruinzona de repetir, com essas duas ênclises. Fora o fato de tentar reduzir Lenin a um vilão de desenho animado que explana seus métodos malignos pra quem quiser ouvir, os caras costumam fazer exatamente o que a frase insinua, criando assim um jogo de espelhos retórico rasteiro pra cacete.
A gente pode fazer uma demonstração desse método só com os acontecimentos da última semana: lobistas da grilagem acusando o MST de invadir terras indevidamente; um pastor (e ainda por cima tio da Damares) que demoniza as drogas e transporta maconha; a confirmação do assalto eleitoreiro contra a Caixa Econômica promovido pelo mesmo Bolsonaro que passou quatro anos acusando a esquerda de querer fraudar as eleições; revolta com a visita do Maduro pela mesma galera que comemorou a reeleição do Orbán; caras que patrocinaram a tentativa de golpe de oito de janeiro tentando acusar o governo de promover o mesmo evento.
Que o material humano disponível para defender ideias de direita sofreu um tremendo desgaste ao longo dos anos não é segredo. Afinal, a essa altura não dá mais pra justificar a o abismo da desigualdade social promovido pelo capitalismo predatório com palavras bonitas e mágicas para designar coisas inexistentes, como “meritocracia”. Então o jeito é apelar pra gente que fala coisas imbecis e insensatas, mas de um jeito muito convincente — justamente porque essas pessoas são imbecis e insensatas e realmente acreditam no que estão falando.
É por isso que hoje, em vez de Paulo Francis e Roberto Campos, o time do conservadorismo vai a campo com Caio Coppolla e Rodrigo Constantino: porque argumentar não dá mais, o negócio é fingir demência e dar escândalo — e pra isso nada melhor do que uma galera que fala não-ironicamente coisas como “socialista de iPhone” e “imposto é roubo”.
Nunca devemos esquecer o quanto a simplicidade e a burrice têm apelo universal. O uso dessa frase do Lenin versão Pixar é perfeita para mostrar como opera a mente direitista, porque remete à primeira resposta que a gente aprende a dar, o urro primal argumentativo, a réplica pra qual a gente apela na primeira vez em que alguém nos xinga, mesmo que de alguma coisa inocente como “bobo”: bobo é você.
X-men do sermão
Arnaldo Branco
6 finais alternativos que foram descartados pelos roteiristas de Succession
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
A estrutura familiar é abalada com a chegada de um jovem de 25 anos que alega se chamar Logan Roy Jr. e possui uma versão atualizada do testamento, na qual ele foi nomeado o único herdeiro legal do patriarca Logan Roy. Exames de DNA comprovam a paternidade e exames grafotécnicos confirmam que o testamento não apenas foi realmente escrito à mão pelo finado Logan como tem valor legal. Após assumir o comando das empresas e dizer que seus irmãos “não são pessoas sérias”, Logan Jr. se tranca em sua sala e revela, de frente para um espelho, que é na verdade o próprio Logan Roy, que transferiu sua mente para um corpo clonado usando tecnologia de última geração. Roman tenta brigar com pessoas na rua, Shiv volta a se relacionar com Tom e Kendall coloca fogo em si mesmo na frente da sede da empresa.
A reunião para definir a venda ou não da Waystar Royco para o grupo Gojo é interrompida pelo ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, que informa, gritando, que mesmo tendo apenas 3% das ações, é a única solução para a polarização entre a família Roy e Lukas Matsson. O ex-candidato a presidente é retirado pela segurança.
A praia em Barbados onde os três irmãos nadam para comemorar a decisão de dar a liderança da empresa para Kendall realmente era infestada de tubarões, causando uma tragédia que deixa o irmão mais velho, Connor, como o único sucessor possível. Isso atrasa o processo de venda para a Gojo e permite que Con tenha um breve período de duas semanas para colocar suas ideias em prática na companhia. Em 5 dias o valor de mercado da empresa cai 75% e Willa começa a insinuar que talvez seja hora deles abrirem o relacionamento. Um tubarão é encontrado morto na costa do Caribe e, para surpresa dos cientistas, há indícios de que talvez ele tenha colocado fogo em si mesmo.
O episódio final abandonaria totalmente a trama principal da família Roy e consistiria em uma hora e meia de Frank e Karl num parque aquático comemorando a venda da empresa. Gerri é a dona da rede de parques aquáticos.
Após Lucas Matsson realizar uma competição estilo “Caldeirão do Huck” entre Tom e Greg, o segundo se torna o CEO da companhia por conseguir acertar mais bolas de basquete nas costas de um funcionário de baixo escalão da ATN. É destituído do cargo em duas semanas quando as ações da empresa caem após vir a tona que a bio dele no Tinder é “CEO da Waystar Royco”. Kendall coloca fogo em si mesmo na frente da sede da empresa.
Todos os irmãos começam a fazer terapia pois percebem que suas disputas pelo poder na empresa consistem apenas numa busca pela validação que o próprio pai nunca ofereceu. Tom e Shiv discutem a relação em termos saudáveis, sem que um tente demolir o outro emocionalmente. Caroline pede desculpa aos filhos por ter sido uma mãe negligente. Kendall pede desculpas aos filhos e à ex-esposa. Na última cena o primo Greg, olhando para a tela, diz que o verdadeiro cargo de CEO são os amigos que fizemos pelo caminho. Na cena pós-créditos é revelado que a terapia não funcionou e Kendall colocou fogo em si mesmo na frente da sede da empresa.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
Às vezes tudo que você precisa é ver um padre atirando no Keanu Reeves
João Luis Jr
Não se pode dizer que filmes de ação não recebam, num certo grau, reconhecimento enquanto gênero cinematográfico. “Os Caçadores da Arca Perdida” foi indicado a 8 Oscars e é visto como um dos grandes de todos os tempos, assim como “Matrix” é considerado uma obra revolucionária e “Mad Max – Estrada da Fúria” recebeu imensa atenção do público e dos críticos em geral.
Mas ainda que sejam sim filmes de ação, é preciso reconhecer que nenhum deles faz parte desse subgênero ainda mais específico que são os famosos filmes de “porradinha”. “Matrix” tem cenas de briga? Sim, mas como parte de uma alegoria maior sobre destino, o teor da realidade e como seria bem mais legal aprender coisas através de um cabo na nuca. Até mesmo “Gladiador”, um filme de ação premiado e que literalmente é sobre um cidadão que ganha a vida brigando, tem bem menos briga do que se poderia esperar, focando em temas como honra, dever e vingança. Ou seja, tem sim porradinha, mas não é absolutamente sobre porradinha.
E é aí, no campo dos filmes que são sobre, para e pela porradinha, que entra a franquia “John Wick”. Não que ela não lide com temas “maiores”, claro. A história do assassino profissional aposentado que decide vingar a morte do seu cachorro matando absolutamente toda e qualquer pessoa relacionada ao assunto e depois acaba tendo que matar absolutamente toda e qualquer pessoa que queira se vingar por causa da galera que ele matou e daí em diante, obviamente toca em outros temas, como amizade, lealdade e consequências. Mas acima de tudo ela é mesmo sobre porradinha.
Mas não apenas qualquer porradinha, e sim algumas das mais instigantes, criativas e divertidas cenas de luta já feitas, que conseguem oferecer o mínimo verniz de realismo necessário (ninguém tem superpoderes, ninguém voa, pessoas brigam em ruas e não no espaço) sem deixar de lado todo o espetáculo e absurdo que um filme do gênero pode oferecer (ternos protegem pessoas de tiros, John Wick cai de um prédio em cima de um carro e sai vivo, as pessoas usam armas que disparam bolas de fogo).
O resultado é uma obra-prima da violência como “John Wick 4”, um filme total e absolutamente pensado em torno da ação, onde a trama só existe para dar peso e sentido às lutas, onde toda uma mitologia foi criada para justificar as mais incríveis brigas, onde um assassino tem um cachorro treinado para atacar as bolas de outras pessoas e Keanu Reeves num dado momento entra numa igreja, cumprimenta o padre, e o padre lhe dá um tirambaço de escopeta e ele voa longe.
Se você gosta de filme de porradinha, poucas coisas podem ser mais lindas que isso.
Fome de justiça
Arnaldo Branco
1960. O comediante Dick Gregory estava prestes a se apresentar no Playboy Club de Chicago quando o gerente avisou que a plateia daquela noite era formada por membros de uma convenção de comerciantes sulistas e que talvez não fosse uma boa ideia subir ao palco, ainda mais naqueles dias em que a discussão sobre direitos civis e a tensão racial estavam em ponto de fervura.
Dick fez questão de fazer seu número, quebrou tudo e a resenha desse show publicada na revista Time lhe valeu um convite para o “Tonight show” de Jack Parr, a atração de maior audiência da TV americana. Mas Gregory se recusou a aceitar se apenas fosse apresentar seu material: queria ser entrevistado, coisa que nunca tinha acontecido com um comediante negro no programa. Parr topou e com uma aparição Dick passou de um artista com dificuldade de pagar o aluguel para uma estrela ganhando um cachê de meio milhão de dólares por ano.
E esse é apenas o prólogo de “The one and only Dick Gregory” (2021) que mostra como o humorista foi derivando para o ativismo, surgindo como uma das vozes mais contundentes na denúncia do racismo e da injustiça, com seu estilo suave que quebrava na ideia plateias que às vezes não pareciam preparadas para concordar com ele. Sua insistência em trazer para o palco as notícias do dia em vez de apelar para um humor fácil custou caro em termos de carreira, mas pra ele era só o preço de conseguir se olhar no espelho.
Nos depoimentos de seus filhos espirituais, humoristas como Wanda Sykes e Chris Rock, vemos a toda reverência a um homem que na última virada da sua trajetória ainda resolveu abraçar outras causas importantes: a do combate à fome e da alimentação saudável. Gigante.
Piadas com câncer e o sentido da vida
Gabriel Trigueiro
A dica hoje é “Tig”, documentário sobre Tig Notaro, uma comediante de stand up muito respeitada entre seus pares e nerds de comédia e o tipo de comediante normalmente classificada como “comedian’s comedian” — tipo um Norm Macdonald, sabe qual é?
Em “Tig” acompanhamos a personagem principal atravessar a seguinte linha do tempo: 1) descoberta de uma infecção bacteriana perigosa que quase a mata; 2) término de um relacionamento; 3) morte da mãe e 4) diagnóstico de um câncer de mama de estágio 2.
Depois de uma apresentação brutalmente confessional e engraçada, Tig é incentivada por seu amigo Louie CK (estávamos ainda em 2015, calma) a gravar um álbum a partir desse material. Tig segue o conselho do BFF e o álbum é um sucesso e a catapulta para o mainstream.
“Tig” demonstra parte do processo criativo de Tig Notaro, durante um período delicado e conturbado de sua vida. É incrível porque acompanhamos a carpintaria literária de suas piadas: nenhuma punch line, nenhum ritmo, nenhuma métrica está lá por acaso.
Além disso, testemunhamos o dia em que, durante uma entrevista no programa do Conan O'Brien, Tig Notaro atende o seu celular e começa a conversar por alguns minutos com sua esposa. Sim, bem no meio da entrevista. Aquilo ali é arte em estado puro. E lembra, como já disse, as maluquices e experimentações do Norm Macdonald.
“Tig” é um baita documentário, porque trata de uma artista no domínio absoluto de sua arte e nos recorda que a comédia, talvez ainda mais do que a tragédia, seja o gênero perfeito para a reflexão existencial.