A idade de Inri Cristo (menos 42 anos)
E chegamos à edição 33, o que significa que a) se cada ano da vida de Cristo fosse uma Conforme Solicitado esta seria a última edição e b) estamos forçando cada vez mais o pé nas comparações e lá pela edição 50 é impossível prever o tipo de absurdo que vamos escrever no começo de cada newsletter, por favor já vá se preparando, analogia is our passion.
Mas o que teremos na programação desta sexta-feira, você me pergunta? (ou no caso eu finjo que você me pergunta enquanto pergunto para mim mesmo para introduzir o assunto que eu já planejava falar, mas não vamos nos aprofundar nessa questão). Bem, hoje temos Arnaldo falando sobre pornografia e erotismo, João discutindo a cobertura política da Folha de São Paulo e Gabriel dando a real sobre o De La Soul, três tópicos que, se digitados em série na busca do Google, possivelmente te levariam a partes bem confusas do site Porhnub.
E claro, também temos cartum, dicas de série, dica de jogo e uma menção à rinha de galo, porque estamos atirando pra todo lado em termos de SEO e ninguém pode nos julgar. Segura firme, vem com a gente e aposta 50 reais no da crista vermelha que o idoso ali do lado falou que o galo branco é bom, mas esse é mau, muito mau.
Função na trama
Arnaldo Branco (Instagram: @arnaldobranco)
Uma discussão muito comum que havia nos cadernos de cultura era sobre a superioridade do erotismo em relação a pornografia. O que eu sempre achei engraçado porque o sexo de verdade parece muito mais com a pornografia do que com o erotismo; na vida real ninguém transa sendo dirigido pelo Wong Kar-Wai e iluminado pelo Walter Carvalho. E a ação não é em câmera lenta e nem sempre a trilha sonora é um solo de trompete do Chet Baker.
Além de um certo elitismo nessa argumentação — afinal o erotismo é a aplicação do conceito subjetivo e excludente do bom gosto à representação do sexo — a pornografia também sempre carregou má reputação porque estava vinculada à realmente problemática indústria pornográfica, com seus casos de abuso e exploração. Mas essa situação mudou um pouco quando os trabalhadores do gênero começaram o poder vender seu conteúdo diretamente pelas plataformas virtuais, sem precisar da mediação das produtoras.
Bom, agora eles sofrem com empresas de cartão de crédito e com a canibalização de seu conteúdo pelas plataformas — resumindo, o grande inimigo do trabalhador sexual é o mesmo de todo trabalhador, o capitalismo. Tem um documentário na Netflix sobre o caso Pornhub que fala bem sobre essa questão.
Mas toda essa introdução é pra dizer que agora nem o erotismo está gozando de muito prestígio. Falo disso porque soube do movimento pedindo a criação de um comando nos canais de streaming para pular as cenas de sexo em todos filmes e séries disponíveis. O que é justamente o contrário do que se costuma fazer nos filmes pornográficos, onde você acelera o vídeo na hora do diálogo e deixa rolando na hora da ação.
Parte das pessoas que apoiam essa ideia defendem que é uma forma de evitar o constrangimento inevitável quando se assiste filmes mainstream com cenas picantes ao lado de parentes. Como alguém que assistiu “A última ceia” com uma namorada e os pais dela, entendo a demanda. Foram os sete minutos mais demorados da minha vida.
Também não vou culpar a geração Z pelo grande número de espectadores que pedem esse recurso por puro moralismo. Cresci nos anos oitenta, quando a epidemia de AIDS suscitou uma corrente anti-sexo que teve um alcance enorme. O puritanismo também é um fenômeno cíclico.
Mas me chamou a atenção o argumento de que muitos preferem pular as cenas de sexo porque elas geralmente “não têm função na trama” — o que me parece uma ideia ainda mais contaminada por um moralismo difuso. Um dado levantado pelo documentário da Netflix informa melhor esse debate: por trás de organizações que dizem combater coisas como pedofilia e tráfico humano em sites como o Pornhub, muitas vezes existem entidades religiosas que pregam a abstinência e o sexo apenas para fim de reprodução.
No fim das contas existe uma convergência na polêmica sobre se a arte ou o sexo devem ter alguma função. A gente vive em um mundo eivado pelo sentido de performance e de utilidade e às vezes essas linhas ficam borradas. Quando nada tem mais muito significado, querer poder pular cenas de sexo pode ser uma maneira de evitar pensar muito sobre isso.
Olá, nós somos a nova equipe da Folha de São Paulo dedicada a cobrir a sua vida da mesma maneira que cobrimos o governo Lula
João Luis Jr (Medium: joaoluisjr)
“Guinada para a extrema-esquerda? Você passou a escova 3x vezes a menos no lado direito dos dentes de trás nesta manhã”
“Editorial: como você ter pego um Uber ao invés do metrô desestabilizou a bolsa e sinaliza um assustador precedente em termos de irresponsabilidade fiscal”
“Apoiando ditaduras? Sua amiga obrigou seus afilhados a comerem vegetais e você não se manifestou”
“Direto da Redação: plantão informa que, em série de ataques a liberdade de expressão, você teria bloqueado ligações da Claro, reclamado de vizinho que coloca música alta após às 22:00 e não quis ouvir longa história de colega de trabalho sobre um problema de micose ocorrido em 2020”
“Luiz Felipe Pondé: Ter deixado sua namorada falar durante cinco minutos sem ser interrompida mostra que você cedeu à ditadura do politicamente correto”.
“Podcast: chamamos para debater sobre a sua vida uma pessoa que te odeia e outra que não gosta de você tanto assim”
“Em mais um caso grave de nepotismo, você nomeou o filho do próprio irmão para o cargo de sobrinho”
“Corrupção na base aliada: seu tio fez um gato de luz no bar dele”
“Desrespeito com o mercado? A caixa perguntou se você estava colecionando os selos pra trocar por uma faca e você disse que não”
“Entrevista: pessoa que não te conhece tão bem decidiu falar uns lances bem ruins sobre você”
“Sinais claros de instabilidade: você tropeçou na calçada”
De La Soul e apagamento cultural
Gabriel Trigueiro (Instagram: @gabri_eltrigueiro)
Finalmente chegou a discografia completa do De La Soul nas plataformas de streaming de música. Depois de sei lá quantos anos, somente agora na primeira semana de março deste ano o seu catálogo ficou disponível nesse tipo de serviço. Essa é uma pauta que deveria ser tratada como uma das mais relevantes nos cadernos e suplementos de cultura e vou tentar aqui explicar o porquê.
Durante muito tempo a existência do De La Soul foi completamente apagada e, com isso, até uma noção vaga da sua importância na história do rap e um senso de proporção e escala com relação à sua influência e legado foram para a proverbial casa do caralho. Há toda uma geração de jovens, por exemplo, que estão escutando De La Soul somente agora, em março de 2023, pela primeira vez.
Antes a gente começa pelo básico: o De La Soul é um dos principais grupos da história do hip hop. Ao longo de décadas lançaram discos revolucionários em termos de produção, letras e samplers. Álbuns como “3 Feet High and Rising” de 1989; “De La Soul Is Dead” de 1991; “Buhloone Mindstate” de 1993; “Stakes Is High” de 1996; “Art Official Intelligence: Mosaic Thump” de 2000 e “AOI: Bionix” de 2001 apontaram novas direções e abriram novos caminhos dentro e para além do universo estético do rap.
O problema começou quando a gravadora da banda, a Tommy Boy Records, se recusou a custear e solucionar impasses legais relativos ao uso de samplers e de pagamento de direitos autorais aos donos das canções originais sampleadas. O precedente se deu com um processo movido pela banda de pop sessentista The Turtles, em mais de 1 milhão de dólares, por conta de um fragmento ridiculamente pequeno e desacelerado, e portanto irreconhecível, de uma música sua.
Para completar, em 2019 a Tommy Boy propôs um acordo extorsivo à banda: apenas 10% do faturamento sobre a execução das músicas em plataformas de streaming. O pior é lembrar que, no início da década de 1990, Prince havia comparado sua relação com a Warner com a de um escravizado e seu senhor, devido a contratos com cláusulas draconianas e cerceamento de sua liberdade artística, intelectual e criativa. Avançamos pouco de lá pra cá.
O imbróglio com o catálogo do De La Soul somente foi resolvido com a compra da Tommy Boy pela Reservoir Media: que finalmente resolveu matar no peito e resolver o problema. Mas, assim, o que fica é a cautionary tale do quão nocivo é o combo composto por leis de direito autoral antiquadas e a concentração desproporcional de poder nas mãos de plataformas como Spotify e Apple Music.
A importância do De La Soul não é apenas cultural, artística ou estética. Sua existência sempre indicou um modelo alternativo até mesmo de masculinidade e de sensibilidade num universo no qual uma certa fanfarronice hetero sempre teve tanta ascendência.
Foi preciso haver um “3 Feet High and Rising”, no final da década de 1980, para que pudesse surgir um Tyler, the Creator e um Odd Future rimando em 2012 que o seu som era para “the ones who got called weird, fag, bitch, nerd / 'Cause you was into jazz, kitty cats and Steven Spielberg”. Não é pouco.
Recentemente morreu, com apenas 54 anos, Trugoy The Dove, um dos membros fundadores do De La Soul. Os outros dois, Posdnuos e Maseo, infelizmente viram a chegada tardia de seu catálogo nas plataformas de streaming num momento de luto e de tristeza profunda.
No ano em que o hip hop comemora 50 anos de existência, com direito à mostra no Museu do Fashion Institute of Technology e o diabo, é um absurdo que artistas do tamanho do De La Soul tenham por tanto tempo sofrido esse tipo de apagamento e de violência concreta e simbólica.
Desvio de finalidade
Arnaldo Branco
Coluna especial da raposinha pedinte do setor de finanças
Você sabia que, apesar de terem outros empregos, Arnaldo, Gabriel e João dedicam horas de suas semanas à confecção minuciosa e atenta desta newsletter? Sim, horas que eles poderiam passar descansando, passeando ou até mesmo com a sua família (sim, não as famílias deles, a sua família, leitor ou leitora, importunando seu pai, pegando comida na cozinha da sua mãe, contando histórias estranhamente pessoais para sua avó), eles investem produzindo a melhor newsletter possível para você consumir no conforto do seu lar ou até mesmo fora dele.
E é por isso que nós, do setor contábil da Conforme Solicitado - que é realmente algo real que existe e não apenas um deles falando na terceira pessoa outra vez - estamos aqui para te lembrar que estão abertos os planos de assinatura paga da newsletter, nos valores de 15 reais mensais, 150 reais anuais ou a opção “sugar daddy”, onde por 250 reais você se torna um padrinho do projeto e nós ouvimos canções da Lana Del Rey pensando em você. Ajude, participe, seja parte da mudança que você deseja ver na sociedade. Ou um pouco menos. Não vamos exagerar também.
Vai na minha
Dicas de consumo do pessoal da redação
“Bem vindo à meia idade, a alternativa era morrer jovem”
Arnaldo Branco
Não tenho certeza sobre o que as pessoas que seguirem essa dica de série vão achar — a crítica parece bem dividida — mas ela bateu em mim de uma forma bem particular. Falo de “A nova vida de Toby” (“Fleishman is in trouble”, Star+, 2022).
Nela Jesse Eisenberg é Toby Fleishman, um médico recém-divorciado com quem sua ex-mulher (Claire Danes, gigante como sempre) deixa os filhos um dia antes do prazo combinado para o revezamento da guarda e desaparece no verão nova-iorquino. Obrigado a lidar com problemas no trabalho, crianças atordoadas pelo abandono e com os amigos elitistas que herdou de sua ex, muito mais rica e ambiciosa que ele, Fleishman corre de um lado para o outro da cidade tentando botar sua vida no lugar e investigando seu passado para entender melhor sua trajetória até esse momento específico.
“A nova vida de Toby” é uma adaptação do romance homônimo escrito pela jornalista e showrunner Taffy Brodesser-Akner, o que é sublinhado pela narração em off de Libby, amiga do protagonista que está escrevendo um livro sobre esses seus dias tumultuados e é veladamente a personagem principal da trama. O recurso às vezes passa do ponto, sendo redundante para retratar o estado de espírito de Toby, geralmente ligado no talo no modo miserável.
Mas a série é bem mais do que as desventuras de um homem recém-separado, até porque também abre espaço para as agruras da sua ex-mulher: é sobre as expectativas frustradas, a chegada da meia idade, burnout, incompatibilidade de gênios e tudo aquilo que as comédias românticas com o Tom Hanks e a Meg Ryan não mostravam, até porque sempre acabavam bem ali no início do relacionamento. Talvez “Sintonia de amor 2” tivesse uma pegada mais Lars von Trier.
Uma crônica muito bem escrita sobre o vendaval que é a vida.
Float like a butterfly, sting like a bee
Gabriel Trigueiro
“Enxame” (“Swarm”, Amazon Prime, 2023) é uma minissérie em sete episódios que o Donald Glover criou depois de “Atlanta” – e se depois dessa frase você não caiu no chão, dançou um break e falou em línguas, desculpa: mas o seu caso é sério. “Enxame”, aliás, não é criação apenas de Glover, mas também de Janine Nabers (roteirista e produtora executiva de “Atlanta”). É uma série sobre Dre, personagem interpretada por Dominique Fishback, uma jovem obcecada por Ni’Jah, uma diva pop claramente inspirada em Beyoncé.
“Enxame” tem elementos de terror oitentista, “Carrie - A Estranha” é a referência mais óbvia, mas também de sexploitation e de grindhouse e dos filmes do Russ Meyer, por exemplo. “Enxame”, em resumo, é a série que o Tarantino gostaria de ter filmado, se ele fizesse TV e se fosse negro. É bem dirigida pra diabo e as convenções de gênero ora são quebradas, ora reforçadas daquele jeitão, e com o humor completamente dodói e surrealista que só o Donald Glover tem.
“Enxame” é um grande comentário, é claro, sobre cultura de celebridades, solidão e narcisismo na era das redes sociais e da ascendência do algoritmo. Mas também é, a exemplo do que um Jordan Peele tem feito recentemente, mas que é uma tradição muito antiga e interessante, black horror bom pra chuchu e de altíssimo nível. Vai sem medo, família.
Mais ou menos como se Magic e truco tivessem tido um filho dentro do seu celular
João Luis Jr
Sempre fui um grande simpatizante dos jogos de cartas. Seja a bisca que minha avó me ensinou a jogar quando criança, o Magic e o Spellfire da minha adolescência não tão rica de experiências sociais, passando pelo carteado da faculdade e todas as rodas de Uno em churrascos que tanto contribuíram para estremecer amizades, muitas foram as minhas experiências positivas envolvendo algum tipo de baralhinho, em jogos de variados níveis de estratégia e dificuldade, que geraram também variados níveis de agressão e xingamento entre amigos.
Porém conforme a vida adulta se estabelece, as oportunidades para esse tipo de diversão vão se reduzindo. Seja porque se torna mais complicado reunir o grupo de amigo para certas atividades, seja porque você tem medo da reação da sua família caso você mencione novamente a palavra “Magic”, seja porque as outras pessoas que você conhece que jogam cartas direto fazem isso valendo dinheiro e só no mês passado já perderam o valor de meio carro, você vai se vendo cada vez mais distante do simples prazer de uma jogadinha descontraída de cartas.
E é aí que entra o “Marvel Snap”, um joguinho virtual de cartas baseado nos super-heróis da editora do Homem-Aranha e dos X-Men que, apesar de não ter o brilhantismo de conceitos como o “Uno de rinha de galo”, oferece a mistura certa de praticidade (joguinho que roda no celular e você joga pela internet sem precisar reunir 3 amigos na sua casa), estratégia (várias cartinhas, cada um com um poderzinho, que podem ser combinadas de diversas formas) e colecionismo de nerd adolescente (inúmeras variantes da mesma cartinha, se esse for o seu lance).
Está com tempo livre entre reuniões que é grande o bastante pra te entediar mas pequeno demais para fazer algo útil? Está com o celular no transporte público mas não quer acessar nenhuma rede social porque é deprimente demais? Quer estar esperando sua namorada terminar de se vestir e assustar sua parceira gritando “essa botaria Aníbal de Cartago pra mamar”, após vencer uma rodada de jogo de carta com hominho desenhado? “Marvel Snap” é sim a solução para esses problemas - quer dizer, com certeza existem várias outras soluções melhores, mas eu tenho me divertido.